Amanhece. Artemísia se levanta e sai, antes que
Arûara acorde. Ela segue em direção à casa de Yuki.
— Bom dia, Artemísia,
sente-se e tome café com a gente!
— Obrigada, Yuki, mas vou para o jardim.
— Você veio ver Itá?
— Ela está aqui?
— Sim. Está no jardim. — Artemísia segue para o
jardim e lá se aproxima de Itá, que conclui seu ritual da manhã.
— Você já me esperava, certo?
— Sim. — Itá responde com um sorriso sereno.
— Então já deve conhecer as minhas dúvidas.
— Conheço sim... mas é necessário que você me
diga, para que tenha consciência delas. Somente assim você encontrará as
respostas que busca.
Artemísia conta sua história com Arûara. Fala
também sobre a seita do templo do Sol e sobre o Muiraquitã Original. Ela tem
dificuldade em se expressar sobre suas dúvidas quanto às intenções do mestre,
mas conta tudo para Itá.
— Minha querida... compreendo suas dúvidas, mas
o que tenho a lhe dizer é que você deve confiar no Dharma e sempre se guiar por
sua intuição. Assim como tenho a minha jornada e somente eu posso segui-la, você também tem a sua e só cabe a você decidir qual caminho deve seguir.
— E quanto à relíquia...
— Você já a encontrou, agora deixe que ela
encontre você. — Itá segura as mãos de Artemísia e a olha profundamente nos
olhos, depois se despede com um aceno com a cabeça e vai embora. Artemísia
decide meditar um pouco antes de tomar uma decisão.
No templo de Arûara, Maya está no pátio com os
discípulos em treinamento.
— Onde está Artemísia?
— Você é o mestre aqui, é você quem tem todas as
respostas. — Maya responde com ironia. Arûara sente a venusiana se aproximando,
então olha para trás.
Artemísia aparece na entrada do pátio. O mestre
espera enquanto ela se aproxima. Quando a guerreira fica de frente para ele, o
sábio a olha desconfiado.
— Quando iremos para o templo do Sol? —
Artemísia pergunta. Arûara sorri com felicidade.
— Quando se sentir pronta, minha linda!
— Estou pronta. — Arûara abraça Artemísia,
depois os dois saem de mãos dadas. Maya suspira e olha para o chão.
Quando chegam ao templo do Sol, todos os anciãos
já esperavam pelo casal. Todos usam o mesmo manto com capuz.
— Venham, O Mestre espera por vocês na sala
sagrada.
— Sala sagrada... — Artemísia sacode a cabeça
para afastar lembranças ruins.
Na sala sagrada, quando o casal se aproxima, o
mestre ignora Arûara e observa cada detalhe de Artemísia. O velho dá voltas ao
redor da venusiana, sempre a analisando, depois para em sua frente e a olha nos
olhos.
— Mesmo sendo uma descendente das Icamiabas,
ainda há um teste pelo qual você precisa passar, antes que possamos lhe
entregar nosso conhecimento.
— E que teste
seria esse? — O velho segue em direção ao altar, uma pedra suspensa, com
tecnologia antigravidade; sobre ela há um dispositivo que é acionado com a voz
do velho mestre. Ele diz algumas palavras e, na parede, atrás do altar, se abre
uma porta.
— Venha. — O velho diz. Artemísia e Arûara se
movem em direção à porta. — Você não; somente a Icamiaba. — Arûara abraça
Artemísia.
— Fique tranquila. Estarei sempre ao seu lado. —
Artemísia sorri.
A porta se fecha depois que Artemísia a
atravessa. O velho segue à frente, com uma espécie de lanterna. O lugar está
muito escuro e sombrio.
Sem olhar para trás, o ancião vai dando
orientações à Artemísia.
— Deixe que sua alma a guie, do contrário...
morrerá.
Artemísia não teme a morte, na verdade, ela
sempre a buscou. Mas a ideia de ficar longe de Arûara a incomoda, agora, e a
guerreira passa a dar mais valor à sua vida.
Os dois chegam ao final do que parecia um
corredor. O velho coloca a lanterna sobre um pequeno suporte. Ele se concentra
e uma luz fraca surge em sua mão direita. O ancião coloca a mão sobre um filete
de um líquido que cai de uma pedra. O líquido se inflama e a luz segue,
formando um grande círculo ao redor de uma chama que se acende no meio da sala.
Ao fundo, uma imagem do Sol começa a se iluminar. Artemísia observa tudo, sem ter
a menor ideia do que estaria por vir.
— Icamiaba. Você deve entrar na chama. — A
guerreira se assusta.
— Mas irei me queimar!
— Se seu coração for sincero, nenhum mal a
atingirá.
Artemísia hesita, reflete um pouco, então pede
ao velho que lhe deixe meditar antes de entrar na chama; ele permite.
Após acalmar sua mente e seu coração, a
venusiana segue em direção à chama que arde no centro da sala. A chama é
intensa e alcança alturas maiores que o corpo da guerreira, diante dela,
Artemísia sente o calor do fogo, começa a suar, mas se entrega de corpo e alma.
Por um instante a mercenária sente seu corpo se
queimando, mas não grita, suporta a dor serenamente, mesmo imaginando que a
morte seria certa; então algo acontece.
A chama vai diminuindo, enquanto parece ser
absorvida pelo corpo da guerreira. Ela sente uma força intensa preenchendo o
seu ser. O brilho em seus olhos vai aumentando e Artemísia grita, em meio ao
êxtase de ser tomada por toda aquela energia. Os olhos do velho brilham de
felicidade e ele sorri enquanto aprecia a cena.
Do lado de fora, Arûara espera, apreensivo.
— O que acontece se ela não passar no teste?
— Ela morrerá, e teremos que encontrar outra
Icamiaba. — Um dos velhos responde. O coração de Arûara fica apertado.
Após algumas horas, a porta atrás do altar se
abre. O velho sai sozinho, Arûara vai ao encontro dele, cheio de ansiedade.
— E então. Onde está Artemísia?
A venusiana sai pela porta, com um vestido de
tecido leve, que o velho mestre do templo a entregou no lugar das roupas que
haviam sido consumidas pela chama. Arûara sorri ao ver a guerreira, pois era a
confirmação de que ela havia passado no teste.
O velho tira um antigo mapa de dentro de um
bolso no manto.
— Tome. Ele é seu. — Arûara hesita em pegar o
mapa. Ele olha para o velho. — Eu te avisei que seria um caminho sem volta.
Pegue; o mapa é seu. — Arûara pega o mapa e sai sem olhar para trás.
Artemísia sente algo estranho. Quando ela tenta
seguir Arûara, o velho mestre levanta a mão direita e a paralisa.
— O que está acontecendo? — A guerreira
pergunta. Arûara para, mas não consegue olhar para trás e sai da sala.
Artemísia tem a confirmação daquilo que sua
intuição estava tentando lhe avisar. A traição de Arûara já era esperada, mas
algo dentro dela queria alimentar a esperança de que se tratava apenas de um
mal-entendido. Os olhos da venusiana se enchem de lágrimas, sua mente fica
confusa, o chão parece não existir mais. Ela sente náuseas e uma pressão forte
na cabeça. O velho mestre se aproxima.
— Houve um tempo em que as mulheres governavam
os destinos da humanidade. Esse foi um tempo de caos. Então, Guaracy, o deus
Sol, enviou seu filho Jurupari, o legislador, para reestabelecer a ordem das
coisas. Por gerações, a ordem foi reestabelecida, mas a humanidade se perdeu
novamente e os homens passaram a dividir o poder de governar com as mulheres.
Nós somos guardiões da sabedoria antiga, que prestava homenagens ao Deus Sol,
por sua força e sabedoria. Somos filhos de Jurupari e, para que sua força
jamais abandone a humanidade, devemos, a cada geração, oferecer a força vital
de uma Icamiaba ao deus que é a fonte de toda a energia Yang, a energia
masculina, a energia que garante a ordem no universo.
As palavras do velho não são bem assimiladas por
Artemísia. A traição covarde de Arûara ainda lhe paralisava o sangue no corpo.
O velho continua falando.
— Mas é o próprio Sol que escolhe o sacrifício.
Somente uma guerreira digna, com um coração sincero e corajoso pode servir de
vítima. — O velho olha nos olhos de Artemísia. — E você parece agradar muito à
nossa divindade. Podem prepará-la. A cerimônia já vai começar. — O velho sai da
sala para se preparar para a cerimônia do sacrifício.
Do lado de fora do templo, Arûara olha para o
mapa. Uma ponta de remorso surge em seu coração.
— Parabéns, maninho. Achei que, quando chegasse
o momento, você não teria coragem de entregar sua namorada aos velhos... — Maya
diz. Ela está encostada em uma parede perto da entrada do templo.
— Não tive escolha. Você sabe.
— O que sei... — Maya se afasta da parede e se
aproxima de Arûara — é que você traiu a guerreira e já havia dispensado os meus
cuidados de babá...
— Não há com o que se preocupar. Os velhos a
sacrificarão para o Sol, hoje mesmo. — Arûara se afasta. Maya fica apreensiva e
olha para a figura do Sol sobre a porta do templo.
— Hum! Bando de velhos malucos... — Maya comenta
com desprezo.
Um dos anciãos entra na sala sagrada, segurando
um belo vestido dourado. Outros estão organizando o altar. Artemísia ainda está
paralisada. Em sua memória, tudo volta e se repete várias vezes; ela tem
dificuldade em acreditar que realmente foi traída.
Quando um ancião se aproxima com o vestido,
Artemísia olha, incrédula. Ele tenta despir a venusiana, mas seu corpo recupera
os movimentos e ela arranca a orelha direita do velho com os dentes.
O velho grita de dor, Artemísia cospe a orelha
nojenta no chão. Os outros anciãos se aproximam para ajudar; um deles, que
estava entrando na sala, percebe o perigo e vai chamar toda a seita.
Vários homens chegam à sala, o mestre do templo
está à frente deles. O grupo vê Artemísia enlouquecida, como se fosse um animal
feroz. Cinco corpos dilacerados estão sangrando no chão. A guerreira está toda
suja de sangue e lança seu olhar selvagem para os anciãos que estão na entrada
da sala, observando, perplexos, a cena que profana o lugar mais sagrado do
templo.
— Mulher insana. Agora seu corpo não serve mais
como sacrifício. Mas você morrerá, pelo ato de blasfêmia cometido em nosso
templo. — O mestre ancião diz.
Todos entram de uma vez e seguem furiosos em
direção à Artemísia. O corpo dela começa a brilhar forte; em seus olhos se vê o
mais puro ódio. Os homens temem a figura da morte que veem na venusiana e
recuam assustados.
— VENHAM! SE É A MINHA MORTE QUE QUEREM, TERÃO
QUE LUTAR POR ELA... — Artemísia provoca os velhos com voz ameaçadora.
Do lado de fora do templo, Maya escuta os gritos
desesperados dos anciãos. Ela sorri.
— Os velhos tiveram o que mereceram. Espero
estar por perto, quando a guerreira se encontrar novamente com seu amado... — Maya segue para o templo de
Arûara.
Após matar todos os homens da seita, Artemísia
vai até o corpo do velho mestre, o olha com desprezo e pega o seu manto, que
tem no fundo um Sol dourado.
— Não se preocupem. — Artemísia veste o manto. —
Vocês jamais serão esquecidos.