Em
meio ao silêncio, fui lentamente voltando a sentir meu corpo, mas não sentia
nenhuma dor a mais das que já estava sentindo antes. Foi apenas a minha
imaginação sentir ao beijo letal da lâmina de Ayumi? Abri então meus olhos sem
entender nada. Em minhas mãos, para a minha surpresa, estava a katana de Doji
Haruki. Defendendo-me daquele golpe que cortaria a minha cabeça. Ayumi
olhava-me confusa, pois havia feito algo que tinha dito que não faria.
Voltei
meus olhos para a lâmina e devo confessar que foi a mesma sensação que tive ao
ver minha noiva pela primeira vez. Meu coração apertou-se com toda a perigosa
beleza dela. Aquela espada era como poesia e para mim, não parecia que ela
tinha sido uma obra mortal. Toda a lâmina era perfeita e muito bem polida, nenhum
arranhão sequer podia ser visto no aço. Eu já havia visto ótimas espadas antes
e havia também a espada de Hiruma Seta, feita pelos melhores ferreiros de todo
o Império, mas perto da grandeza daquela espada, outras eram apenas gravetos.
Sua
lâmina tinha uma tonalidade rosada que sob a luz da lua dava uma aura densa e
fria. O metal era quase mágico, o brilho dele era como o de um espelho. Talvez
eu já tenha falado sobre isso alguma vez antes, mas em todo caso irei explicar.
Espelho é algo que o Clã Unicórnio trouxe das longínquas terras Estrangeiras.
Ainda não é tão comum no Império, mas já se tornou um item indispensável para
as damas e para os atores.
Não
era apenas a lâmina que impressionava, mas era o que dava maior impacto. Outras
pesadas eram belas, mas a cor cinza do metal parecia deixa-las sem vida na
maioria dos casos. Nunca tinha visto nada parecido com aquilo, o ferreiro que a
fez parecia ter recolhido milhares de pétalas de cerejeira e trabalhado até que
elas formassem aquela arma. Cada pequeno detalhe daquela katana foi
cuidadosamente preparado, não era atoa que se tratava de uma espada Garça. Para
algumas pessoas, toda aquela beleza era um desperdiço em uma katana, eu
costumava pensar assim.
Uma
espada é feita apenas para matar. Nenhuma arma letal serve para outro propósito.
Não há razão para enfeitar um objeto feito para assassinos, mas aquela arma
tirou esse pensamento de mim. Sua beleza era tão harmoniosamente preparada que
parecia natural, mas esqueça tudo isso. Tenho certeza de o que vi foi apenas
porque aquela lâmina salvou minha vida. Minha adversária estava tão surpresa
quanto eu, e mesmo me olhando o tempo todo não tinha visto quando puxei a
espada de Doji Haruki para me proteger. Para ela, parecia como se a própria
espada tivesse reagido ao seu ataque.
Eu
mesmo não sei como aquela espada foi parar em minhas mãos. Não senti quando
toquei na Tsuka e a puxei para defender-me. Parecia, para mim, e talvez até
para a própria Ayumi, que a espada estava agindo sozinha para não permitir a
morte de seu portador. Eu era como um espectador em meu próprio corpo. Não
podia fazer nada além de assistir e talvez assim fosse melhor. No estado em que
estava, fico surpreso por ainda estar consciente.
As
coisas nunca são como nós queremos, no entanto. Logo, fui sentindo o controle
do corpo voltar para mim. Quase deitado ao chão e com o corpo totalmente em meu
controle, senti meus braços fraquejarem por um momento, sentindo logo quando a
lâmina da mulher me cortou levemente o pescoço. Respirei fundo e fui empurrando
Ayumi para trás. Já estava de pé, ainda ofegante e com o suor escorrendo por
meu peito nu. Aquela espada era como uma terceira pessoa que estava ali me
incentivando a não desistir, inspirando-me a continuar lutando por minha vida.
Eu posso dizer que senti vergonha naquele momento, aquela arma estava mais
ativa em me manter vivo que eu mesmo.
― Você
não tem vergonha na cara, Escorpião? – Ayumi disse ofegante – há um minuto você
disse que não usaria essa espada.
Eu
não podia retrucar. Parecia que se eu tentasse fazer qualquer outra coisa que
não me concentrar ali, eu desmaiaria. A espada estava pesada demais e não
consegui mantê-la erguia, tentei ao máximo, mas mesmo assim, a ponta da espada
fincou-se no chão. Ayumi aproveitou para lançar-se contra mim, mas foi forçada
a recuar para não ser cordada pelo golpe ascendente que desferi. Sem forças
para ataques muito complexos, aproveitei o balanço e aproximei-me dela voltando
com um golpe. Ela desviou, dando mais um passo para trás e senti o impacto da
espada acertando o chão.
Ayumi
desferiu um golpe contra meu ombro. Tentei erguer a espada novamente, mas seria
lento demais. Respirei fundo e levei a mão como um raio para o pulso dela. Apertei
seu pulso com toda a força que tinha e forcei-a a continuar andando para trás
de mim. Ela deu alguns passos e talhei em direção a suas costas, mas,
desajeitado, perdi o equilíbrio e acabei ajoelhado à lama sob meus pés com o
fio cortante passando ao largo de suas costas.
Eu
respirava pesado, sentia cada músculo latejar e o suor misturado a meu sangue
escorrer por minha pele. Ayumi virou-se para mim esperando que me levantasse. Respirei
fundo e coloquei-me de pé, levando a espada o mais alto que pude. Nos encaramos
apenas por meia respiração e avançamos em sincronia. Meu golpe fincou-se em seu
ombro. Ela esqueceu-se da dor e balançou sua espada em minha direção, mas
puxando minha arma, defendi seu golpe poderoso.
O
impacto me fez recuar e bater com força as costas contra uma árvore. Senti o ar
deixando meus pulmões e a visão escureceu momentaneamente, meus joelhos cederam
e cai ao chão, evitando um golpe mirado em minha garganta. Balancei a cabeça e
ergui o olhar. Eu estava abaixo dela, ajoelhado, enquanto ela tentava tirar a
espada cravada na árvore as minhas costas. Meus braços não me responderam
direito, mas eu não podia deixar uma chance como aquela escapar tão facilmente.
Apertei meu maxilar e levantei com toda a força que consegui reunir, aquele
momento brusco a pegou de surpresa. Acertei uma cabeçada em seu estômago que a
fez recuar vários passos para trás sem fôlego e desarmada.
A
menina não tinha, assim como eu, forças para praguejar. O golpe que havia dado
tinha afetado nós dois. Ela lutava para respirar novamente e eu para meus olhos
deixarem de embasar. Minha cabeça estava zonza, mas pelo menos eu tinha
conseguido fazer ela recuar, dando o tempo que precisava para recuperar-me. Ayumi
ficou olhando para mim com a preocupação nos olhos por estar lutando agora
desarmada, e ficou pálida quando segurei o cabo de sua espada, a retirando da árvore.
Ela
deu um passo para trás quando viu que agora eu possuía duas espadas e ela
estava com as mãos nuas. Mesmo que estivesse totalmente descansada, ela não se
achava capaz de lutar apropriadamente contra alguém com duas armas. Seus
pensamentos obscuros sobre o próprio futuro foram traídos quando joguei aos
seus pés sua katana. Ela piscou sem entender e eu não me dei ao trabalho de
explicar. Ela entendia muito bem o que eu estava tentado “dizer”. Àquela altura,
já não importava como iriamos lutar, precisaríamos dar um fim o quanto antes
naquela luta para que pelo menos um tivesse a possibilidade de viver.
Por
um segundo, eu não posso mentir para você, eu pensei em simplesmente acabar com
a vida dela. Era fácil, era simples. Ela estava desarmada e cansada demais para
continuar lutando por muito mais tempo. Com duas espadas eu poderia continuar
brincando um pouco mais com ela, até que ela já não tivesse mais como resistir
as minhas investidas e por fim, matá-la, mas esse pensamento, naquele momento,
pareceu-me errado. Algo dentro de mim havia dito que eu deveria ser justo ou eu
poderia arrepender-me amargamente por muito anos. Não conseguindo refutar
àquela voz interna, eu resolvi dar a ela uma chance de viver.
Ayumi
murmurou alguma coisa, parecia estar agradecida pelo que fiz, abaixou-se
pegando sua espada e demorou mais do que deveria para levantar-se. Ela também
estava no seu limite. Seu corpo estava em melhor estado que o meu, mas o veneno
que implantei em seu corpo tinha lhe deixado ainda pior. Ela respirava pesado
e, assim como eu, lutava para manter os olhos abertos. Nossos olhos se
encontraram e com o tempo parecia que estávamos sincronizados. Nossas
respirações estavam igualmente alinhadas, assim como os leves espasmos dos
músculos. Eu já tinha ouvido minha mãe falar aquilo antes.
Quando
duas pessoas trocam golpes, elas conheceram melhor uma a outra. Ela costumava
dizer que quando duas pessoas trocavam golpes de espadas, suas almas entravam
em sincronia de forma que um poderia ouvir os pensamentos superficiais do outro.
Isto era apenas história é claro, mas naquele momento, não me pareceu mera
fantasia. Nós nos aproximamos um passo de cada vez. Agora distantes um braço,
falamos ao mesmo tempo com o cansaço visível em nossas vozes.
― Vamos
terminar isso com um duelo. – suspiramos aliviados enquanto falávamos – Eu
concordo.
Engoli
a saliva acumulada em minha boca, minha garganta estava seca. Nos afastamos um
pouco mais. Ela ficou de frente para mim. O cabo da espada na altura de seu
umbigo e lâmina inclinada apontando para mim. Ela fechou os olhos para trazer o
que lhe restava para continuar aquilo só um pouco mais. Eu guardei a espada na
bainha, e fiquei de lado para ela a olhando de canto. Uma mão na bainha da
espada com o dedo na tsuba e a outra mão como uma garra um palmo de distância
do punho da espada. Curvei meu corpo um pouco, ficando menor, e reuni a força
nas minhas pernas e braços.
Eu
sentia aquela coisa ainda me olhando. Parecia analisar-me e, de alguma forma,
eu sentia a aprovação pelo que fazia. Não me pergunte, eu deveria estar louco
naquele momento, por ter perdido tanto sangue. Fechei os olhos e trazia para
fora o Vazio que estava em mim. Deixe-me explicar-lhe enfim o que é esse Vazio.
Entenda, ele como uma força que move este mundo, ele não é totalmente palpável,
mas todos os vivos têm acesso a sua inspiração. O Vazio contido em cada um de
nós nos dá a limitada possibilidade de realizar ações que são impossíveis em situações
comuns.
Samurais
conseguem acessar essa pequena parcela do Vazio por vontade própria, devido ao
constante treinamento e refinamento de suas técnicas. Dizem por ai que alguns
inferiores como os heimins, e até mesmo os etas, podem acessá-lo. Eu acho
improvável que isto seja verdade, pois mesmo nós Samurais precisamos de muito
anos de prática. Histórias dizem que um heimin conseguiu levantar sozinho uma
pesada carroça para salvar o próprio filho de morrer esmagado, mas nada de
concreto nessa história. O que você deve saber é que o Vazio é uma força que
usámos para superar nossos próprios limites.
Eu
sentia meu corpo inundado pela poderosa Força e abri meus olhos. O mundo
parecia mais claro para mim e tudo se movia mais lentamente. Ayumi também me
olhava. Nós passamos alguns segundos analisando um ao outro. O vendo soprava as
folhas secas por entre nós e as feridas mútuas eram perceptíveis. Eu pude me
lembrar naquele momento que Ayumi tinha acessado a força do Vazio algumas vezes
e talvez não conseguisse fazê-lo mais por hoje, isto era uma vantagem. Eu me
sentia calmo apesar de saber que esse duelo levaria um de nós dois à morte.
Meus olhos se focaram nós dela. Ayumi começou a andar para o lado e eu fui
andando junto.
Passamos
algum tempo dando voltas em um círculo imaginário que apenas nós dois podíamos
ver. Esperávamos pelo momento certo de atacar. O silêncio era quebrado apenas
pelo farfalhar das folhas secas e nossas respirações que estavam em perfeita
sincronia. Minha concentração foi aprofundando-se e eu já nem mesmo podia ouvir
os sons da natureza a minha volta, mas posso jurar para você que podia ouvir
cada músculo da garota à minha frente. Seu coração batia agitado e ela ia
apertando mais firme as mãos nos punhos da katana. O momento que esperávamos
finalmente havia chegado com o sopro do vento gelado que trazia consigo o sabor
definitivo da morte vindoura.
Uma
folha soltou-se de uma árvore e veio dançando pelo ar à nossa frente.
Acompanhamos o movimento dela com os olhos um pouco, e logo voltamos a cruzar
olhares. Nossa concentação estava tamanha que podíamos ouvir o assobio do vento
naquela fina folha verde. Como se os espíritos do vento fossem os juízes
daquele duelo. A folha bateu no chão e seu som foi o início de nossa luta.
Ayumi
disparou para frente, enquanto eu ficava parado esperando por ela. Ela chegou
ao alcance de minha espada no meio do meu piscar de olhos e minha espada deixou
sua bainha sozinha, como se a própria arma estivesse esperando por aquilo para
poder atacar. Meu braço esticou-se, atacando-a, que se defendeu com a katana. O
som do impacto pareceu como a explosão de pimenta gaijin em meus ouvidos.
Pimenta
gaijin é como se chama a substância negra, estrangeira, que se infiltrou em
nossas terras. Aquela maldita substância negra é extremamente explosiva e levou
a vida de alguns dos Imperadores passados. Por esse motivo, uma lei foi
sancionada séculos antes que o seu comércio ou utilização estava terminantemente
proibida. Alguns Clãs ainda se utilizam dessa arma, mesmo assim.
Vendo
meu golpe ser defendido, apenas puxei a espada para guardar na bainha novamente
e desviei por baixo de um golpe horizontal de Ayumi. O vento assobiou acima de
minha cabeça, cortando pela lâmina Seppun. Pulei rolando para trás de Ayumi que
se virou assumindo novamente sua postura de duelo, e eu a olhei. Correndo,
desferi outro rápido ataque, minha espada deixou a bainha e foi de encontro ao
seu ombro desprotegido. Eu conseguia ver claramente aquela abertura, como se
meus sentidos tivessem ampliados mil vezes. Dessa vez, ela quase não conseguiu
defender-se, o rasgo profundo tirou-lhe uma quantidade de sangue que eu mesmo
não sabia ser possível. O osso do ombro resistiu um pouco aquele golpe, mas não
durou muito, sendo cortado logo depois, até que a lâmina fria foi parada pela
espada dela. Ayumi gemeu de dor e empurrou-me com a espada, me forçando a
recuar.
Não
havia espaço para troca de palavras. Os pensamentos de Ayumi estavam quase
totalmente voltados para cumprir seu dever com seu pai, mas alguns poucos
estavam em mim. Ela estava irritada por minha maneira de lutar, mas
impressionava-se de duelar tão bem. Eu duelei muitas vezes com muitos amigos
garças, mas meu melhor amigo foi o que me alavancou na arte do duelo. Ele foi
meu professor muito mais que minha mãe nesse ponto, mas que ela nunca me escute
falando algo do tipo. Eu ainda prezo por minha vida.
Recomeçamos
os ataques defendendo e atacando na mesma medida. Novas feridas foram
aparecendo em meus membros e eu ia deixando algumas pelos dela. Ofegantes e já
quase apagando, nós decidimos acabar com aquela luta neste derradeiro ataque.
Clamei ao Vazio pessoal para dar-me seu poder e abri os olhos. Uma fraca luz
prata foi domando a lâmina da katana em minhas mãos, como se chamas prateadas
ardessem no metal frio. Nunca tinha visto nada aquele tipo e para mim, naquele
momento, era apenas um delírio de minha mente cansada.
Avancei
em um ataque devastador. Ayumi balançou a espada contra mim. O golpe pareceu criar
um vácuo ao nosso redor e naquele momento, o tempo pareceu parar para mim.
Nenhum som podia ser ouvido, nem mesmo nossos próprios corações que batiam
quase explodindo. Eu vi a brilhante trinca espalhando-se lentamente pela lâmina
oposta, e forcei ainda mais meus músculos naquele ataque, jogando todo o meu
peso no balanço. Sua katana tornou-se pedaços que voavam em todas as direções,
as faíscas iluminaram de forma podre o rosto de Ayumi, riscado pelo pavor de
ver sua preciosa espada esfacelando-se sob meu ataque. Finalizando o último balanço
daquela espada, talhei o tronco inteiro da menina, mas naquele momento não
havia espaço para sentir pena ou arrependimento pelo que estava feito. Nós
apostamos nossas vidas naquele duelo e minha jogada foi melhor que a dela,
causando sua derrota, fim.
Meu
corpo inteiro doía, podia sentir cada fibra de meus músculos reclamando por
tê-las levado a um ponto que nunca antes tinha precisado. Tombei a cabeça para
trás respirando junto e ouvi o barulho distante e pesado de um corpo
despencando ao chão seguido de um estalado estranho metálico. Levantei a espada
em minhas mãos e vi uma trilha luminosa aparecendo na lâmina que quebrou há um
palmo da guarda. Eu tentei rir, mas acabei tossindo um pouco de sangue e caí de
joelhos quando a força de minhas pernas se foi.
Eu
senti bater contra algo e o cheiro doce de um perfume suave misturado ao ferroso
de sangue fresco. Suspirei sentindo o calor fraco do corpo de Seppun Ayumi que
respirava fracamente tendo leves espasmos. Olhei por cima do ombro, notando que
ela olhava para as estrelas.
― Eu
nunca fui derrotada em um duelo antes, nem mesmo por um Kakita – ela tossiu fechando
os olhos – eu fiz uma promessa de casar-me com aquele que me derrotasse em um
duelo... que esquentasse meu sangue...
― É
uma pena, Ayumi-hime – eu respirei fundo, fechando os olhos e sentindo o doce
cheiro dos cabelos dela – Nossas vidas já não nos pertencem mais.
―
Sim, nossos ancestrais nos aguardam, Escorpião – ela suspirou – Mate-me, eu não
quero morrer lentamente, minha morte deve ser digna, mas eu não tenho mais
forças para levantar minha Honra.
― Você
me pede algo cruel, Princesa – eu disse me levantando – Mas eu... concederei
esse desejo.
Ayumi
estava totalmente apoiada em mim e caiu com um baque surdo. Ela tossiu sangue
novamente, sujando parte de seu rosto enquanto me olhava. Eu levei minha mão
para a cintura dela de onde peguei sua Honra. Sua Wakizashi saiu da bainha
roçando no metal. Montei sobre ela e rasguei um pedaço de meu kimono para limpar
seu rosto. Uma lágrima escorreu por seu rosto e aquilo quase me fez parar. Sua
tristeza quebrou um pedaço de meu coração Escorpiônico. Fechei os olhos por um
momento e voltei a olhar para ela.
― Eu
quero saber como é sentir os lábios de alguém antes de deixar este mundo– ela
disse com o rosto ficando levemente vermelho.
Eu
parei de limpar seu rosto e olhei diretamente nos olhos dela. Não havia dúvida
neles, ela ainda era jovem, provavelmente não tinha amado alguém de verdade e talvez
seu casamento fosse puramente político. Eu podia ver o seu futuro naqueles
olhos moribundos. Ayumi teria um casamento majestoso, mas não seria feliz.
Cumpriria seus deveres com sua Família e seu Pai, mas não amaria o homem que
não escolheu. Um destino cruel escrito pelas fortunas no dia de seu nascimento,
mas eu me lembrei de que eram assim que as coisas funcionavam. Nem todos tinham
a sorte de se apaixonar e casar com a mesma pessoa.
Ayumi
continuava olhando para mim esperando uma resposta, enquanto eu divagava pela
sorte que eu tinha por ter encontrado minha noiva. Fechei meus olhos, dando um
suspiro e tornei a olhar para ela.
―
Seu primeiro beijo levado por um Escorpião? Certamente seu pai me mataria ao
descobrir isto – eu disse fitando seus olhos e ela riu fracamente – e eu não
seria o parceiro ideal para seu amor. Eu sou um enganador, não sirvo para a
nobreza.
― Eu
não me importo, Escorpião – ela suspirou, seus pulmões tremiam – Eu não serei
mais da nobreza daqui a pouco. Esta será uma casca vazia enquanto cearei com
meus ancestrais.
As
palavras ficaram presas em minha garganta e ela fechou os olhos esperando por
aquilo. Respirei fundo e baixei o corpo para ela. Meus lábios tocaram os dela,
mas não havia calor, não havia o que ser sentido. Sua língua roçou em meus
lábios e logo seus braços passaram por meu pescoço. Continuei o beijo um pouco
mais, afagando seus braços e afastei a olhando. Ela ofegava olhando para mim. Suas
últimas palavras e seu sorriso ainda atormentariam meus sonhos por alguns anos.
Eu não podia, mesmo que não fossemos morrer ali, responder ao seu amor, eu já
estava comprometido com alguém.
―
Obrigado – ela disse sorrindo.
Finquei
a espada, não houve dor, não houve sangue, apenas um suspiro aliviado enquanto
o rosto dela ia tornando-se pálido. Eu olhei para ela triste, enquanto via-a em
paz com o rosto ainda um pouco sujo de sangue e suor. Passei os dedos pelo
rosto dela e levantei. Precisava sair dali, mas tudo ficou escuro. Acordei, não
sei quanto tempo depois. Talvez meros segundos, talvez várias horas.
Levantei-me com dificuldade e notei que estava em um lugar diferente. Penso que
eu estivesse em um lugar diferente, mas provavelmente isso era apenas coisa de
minha cabeça.
O
corpo morto ainda estava ali. Havia muito sangue, ainda fresco, espalhado pela
grama e de alguma forma eu precisava sumir com aquele corpo. Eu seria acusado
diretamente pelo assassinato de um Seppun se continuasse daquela forma. Olhei
para a espada quebrada em minha mão e suspirei, eu ainda precisava procurar
pelos pedaços daquela espada. Deixei-a no chão por um momento e levantei-me.
Peguei
alguns galhos secos e joguei por cima do corpo, não deixaria provas do que
aconteceu aqui, nem muito menos deixaria que os espíritos malignos o
profanassem. Existem muitas histórias sobre Kanseis, espíritos opostos aos
kamis, que tomavam o controle de um cadáver e o transformavam em um morto vivo.
Estas histórias eram comuns nas terras do caranguejo, mas a maior possibilidade
de algo assim acontecer era nas terras sombrias. Eu não pagaria para ver, no
entanto.
Joguei
óleo por cima dos galhos e de alguma forma consegui acender o fogo. Afastei-me
o máximo que pude, mas não importa o quanto andasse, eu não encontrei meus
aliados. Meus olhos ficaram pesados e resolvi parar um pouco para descansar,
mas pelo cansaço acabei desmaiando novamente. A última coisa que lembro antes
de apagar era do clarão que o fogo havia provocado. Não sei quanto tempo, mas
acordei ouvindo passos vindos naquela direção. Eu não conseguia me mover, então
respirei fundo e me virei para ver do que se tratava o som.
Meu
coração só se acalmou quando vi que se tratavam dos meus companheiros que vinham
mancando. Suas roupas estavam sujas de sangue e rasgadas. Eles caminhavam atrás
de Hiruma Seta que vinha olhando para o chão procurando por rastros. O Akodo
viu quando levantei o braço trêmulo para mostrar onde eu estava e ele pareceu
falar alguma coisa para Kuni Karasu que vinha junto a ele, carregando Hida
Hiato desmaiado. O Shugenja não pareceu muito feliz ao me ver, mas eu não dei
muita atenção naquele momento. Eu descobri depois que eles fizeram uma aposta se
eu ainda estaria vivo. Eu poderia ter ficado ofendido, poderia mesmo, mas eu
provavelmente teria feito a mesma coisa.
Eles
se aproximaram e Akodo Ryuu me ajudou a ficar sentado. Meu corpo ainda doía
bastante e o sangue já estava seco em minhas roupas. Fiquei zonzo pela perda de
sangue e meus olhos ficaram embaçados.
― O
que aconteceu aqui, Shosuro? – O Akodo perguntou atrás de mim – Onde está
Senhorita Ayumi e o guarda?
Eu
olhei ao redor, meus olhos continuavam embaçados, apertei-os por alguns
instantes e senti a visão ir lentamente voltando. Eu quase ri quando percebi
que não havia me movido 15 passos de onde comecei o incêndio e tudo, a exceção
de onde eu estava sentado estava queimado. Tossi um pouco de sangue e apontei
para onde estava a fogueira originalmente.
― O
Guarda está ali, seu corpo já deve ter virado pó – eu apontei para a fogueira –
Quanto a Ayumi-sama, eu não tenho ideia.
―
Você queimou o Guarda? – Kuni Karasu perguntou com espanto.
― Eu
ouvi histórias sobre corpos que levantam depois de mortos e me preocupei de
acontecer enquanto estivesse desmaiado – eu respondi rapidamente.
Eu
não vi o rosto de Kuni Karasu, mas ele não pareceu acreditar naquilo. Óbvio,
era uma mentira, mas dificilmente alguém veria através dela a não ser que
Hiruma Seta procurasse. Se ele resolvesse procurar aí sim eu estaria com
problemas. Felizmente, isso não aconteceu. Todos estavam cansados demais para
perder tempo nesse momento, então me perguntaram sobre a daisho.
―
Bem, esse é o problema – eu respondi suspirando – Durante a luta, eu fui
forçado a usá-la como arma.
―
Você o quê?! –Todos gritaram, menos Hiruma Seta, por motivos bastante óbvios,
mas sua expressão não era das melhores.
Eu
fiz uma careta incomodada pelo grito repentino e suspirei mais uma vez. Em meus
ombros, eu podia sentir as pesadas mãos de Akodo Ryuu destruindo meus ossos
doloridos. Ele parou assim que reparou que eu não estava em condições para esse
tipo de punição.
―
Como eu disse, eu fui forçado – continuei – Minhas espadas foram destruídas por
um golpe de espada de Ayumi-sama e me vi forçado a usar a espada de Doji
Haruki. Para minha sorte ou azar, como quiserem ver isso. A espada foi quebrada
e Ayumi-sama perdeu interesse pela daisho. Consegui matar o guarda e
aparentemente Ayumi-sama foi embora.
―
Isso é estranho... – Kuni Karasu ponderou – Ela deveria saber que uma maldição
não é quebrada junto com um objeto.
―
Mais estranho que Seppun Ayumu mandar roubar uma daisho que deu de presente
para alguém? – Eu perguntei tossido – Acho que não. Ela não era uma
especialista em maldições, então não fazia nenhum sentindo levar uma espada
destruída de volta.
―
Nós deveríamos ir atrás dela – disse Kuni Karasu – Eu não sei como foi a luta,
mas pelo estado do Escorpião, deve ter sido difícil.
Eu
fiquei um pouco tenso. Se eles fossem atrás de Ayumi, o que poderia acontecer?
Temendo pelo pior, eu fui me levantando ajudado pelo Leão e notei que Hiruma
Seta havia encontrado os pedaços da katana de Doji Haruki. Fiquei aliviado por
um momento, mas voltei minha atenção para o que realmente importava ali.
―
Você pode ir se quiser, mas minhas mãos já ficaram manchadas de sangue o
suficiente – eu falei pausadamente – Hida Hiato parece precisar de atenção médica,
e da forma como estamos não seria uma boa ideia nos aventuramos pela floresta,
pois não sabemos quantos bandidos ainda existem.
― O
Escorpião está correto, estamos acabados, precisamos reportar sobre o ocorrido
aqui para Hida Samano e descansar para partirmos amanhã cedo – Akodo Ryuu falou
– Shosuro precisa de cuidados médicos, todos precisamos de cuidados médicos, e
ele precisa concertar a espada de Doji Haruki.
―
“Há um ferreiro em Washimazu” – Hiruma Seta escreveu em um papel.
―
Sim, eu já sei que essa é minha responsabilidade, mas eu não conseguirei cumpri-la
tão cedo – eu ri fraco – Não sei nem se vou conseguir voltar sozinho para a
vila.
― Há
shugenjas em Washimazu que podem tratar suas feridas – Kuni Karasu falou – Não
é como se só você precisasse ser tratado, Escorpião.
Logo
que terminamos de conversar, Akodo Ryuu me apoiou em seu ombro e partimos de
volta para Washimazu. Abatidos e exaustos e, para piorar, com quase uma missão
falha nas mãos.