Sentia meu corpo ficar gelado e
minhas entranhas revirando-se, enquanto o braço fantasmagórico me atravessava.
Ao longo do braço eu pude ver gotas de sangue fluindo de mim para ele, e no
meio do caminho tornando-se pontos brandos e esvaindo-se até desaparecer
completamente no corpo dele. Meus olhos estavam pesados e eu lutava para
deixá-los abertos. Eu tossi sangue quando senti os dedos do fantasma em volta do
meu coração que pulsava quase parando, e ele abriu um sorriso largo, mostrando
que poderia me matar se assim desejasse.
Levantei os braços, apertando
firme o punho da espada. Sentia os braços tremerem violentamente apenas para
deixá-los erguidos. Respirei fundo e meus olhos encontraram os da criatura que
ria divertindo-se com meu sofrimento. Desci com força o golpe, mas foi indiferente.
Eu não sei se porquê a criatura estava me tocando ou se foi sorte, mas eu
sentia a lâmina cortando algo sólido. Um guincho de dor ainda maior ecoou. A
espada atravessou o corpo da criatura, sujando o chão com uma gosma negra mau cheirosa.
― Cuidado, essa gosma deve ser
maculada! – o shugenja disse com repulsa.
Assenti com a cabeça e balancei a
espada, jogando a gosma presa na lâmina ao chão. A gosma era viscosa e parecia
meio ácida, fazendo um barulho baixo e estranho enquanto se espalhava pelo chão
de terra batida. Levei a mão ao peito e não encontrei nenhuma ferida, mas eu
evitaria que aquilo me pegasse novamente. Ouvi um assobio e levantei os olhos
vendo uma lança vindo à minha direção. Pulei para o lado, olhando para o
espírito que sorria malicioso e senti meus pelos corporais arrepiando. Chutei o
cabo da lança quase no limite e a desviei de sua rota. Se ela tivesse
continuado ela acertaria o meio do peito de Kuni Karasu que estava já fazendo
uma prece para os espíritos. Ele não notou quando a lança passou raspando por
seu ombro, abriu os olhos me vendo com uma expressão preocupada e ficou sem
entender. Balançou a mão e uma bala de ar giratória formou-se ao longo do
caminho até acertar o peito do fantasma, e explodiu jogando-o para trás com os
braços abertos.
Eu vi uma nova chance de atacar
nesse momento. Desferi um golpe na cintura dele, mas foi igual à primeira vez,
pois o golpe passou sem acertar nada e um segundo depois o corte foi se
formando lentamente na cintura transparente, e a gosma escorreu pelo corpo dele.
O monstro guinchou de dor e desapareceu no ar. Hoje eu paro para pensar que
tivemos muito azar naquele dia. Kaiu Tensin além de ferreiro era um armeiro que
fazia flechas para a divisão Hiruma em Wachimasu. Várias flechas começaram a
erguer-se no ar, levantadas por uma fina fumaça esverdeada. Eu não me recordo
quantas foram, mas foi uma chuva quase interminável de flechas. Nós derrubamos algumas
armas em cima de uma mesa e nos abrigamos debaixo dela. As flechas foram perfurando
a madeira pesadamente, mas conseguiu resistir ao ataque.
Empurrei a mesa virando-a de
cabeça para baixo, e pela quantidade de flechas pregadas na mesa, uma pequena
rampa levava direto ao Gaki. Corri por cima, já evitando as pontas de flecha
atravessando a madeira e pulei. Kuni Karasu conjurou algêmas feitas de puro jade
que forçaram o Gaki a se solidificar e me deu oportunidade de desferir um golpe
pesado contra o monstro. Puxei de dentro de mim a força do Vazio e senti-a
correr para a lâmina, deixando ela com um brilho opaco. Cortei através a carne
apodrecida do Gaki que parecia queimar enquanto a lâmina tocava sua pele. A lâmina
ganhou um brilho prateado, parecendo absorver a essência do fantasma. Ao chão,
eu olhei para a lâmina que tremeluzia mais intenso enquanto o Vazio em mim a
alimentava junto a essência fantasmagórica.
O Kuni também não entendia o porquê
daquilo, mas mandou que eu continuasse atacando aquilo, pois parecia estar
levando o espírito para sua morte definitiva. Espíritos famintos do Gaki-dô não
podem ser mortos por métodos comuns, pois se forem derrotados eles apenas
retornam ao mundo deles e podem voltar para se vingar outra hora. Para evitar
seu retorno, eles devem ser destruídos pela essência, assim eles podem voltar
livres para seus ancestrais ou para o total esquecimento, em caso extremos.
Corri novamente contra a criatura,
acertando um golpe em suas costas e atravessei-o, virando novamente para
atacar. Girei o corpo aumentando a força do ataque e o brilho da espada ficou
forte demais para continuar olhando para ela. Senti a espada cortar alguma
coisa e um guincho de desespero surgiu na minha frente. Ouvi um barulho
estranho como de vidro se partindo e uma força me puxava em sua direção. O
brilho na espada ficou menor e eu pude ver o que me puxava. Onde havia um Gaki,
momentos antes, agora tinha um portal enegrecido puxando tudo para dentro.
Olhei em volta e vários objetos eram tragados por aquilo. Kuni Karasu se
segurava em uma viga e o corpo desmaiado de Kaiu Tensin vinha sendo arrastado
pela força. Em minha mão, a espada vibrava e de alguma forma eu sabia que era
ela que aquela coisa queria, mas não conseguia soltá-la. Respirei fundo e olhei
por cima do ombro para o Kuni. O vento era alto demais, quase não me deixando
escutar nada, mas eu li nos lábios dele quando ele perguntou: “O que vai fazer,
Escorpião? ”.
― Diga a Doji Haruki que sinto
muito! – eu gritei o mais alto que pude.
Eu senti um puxão forte em meu
centro e não consegui me manter mais segurando em seja lá o que estivesse me
segurando naquele momento. Meu corpo foi arrastado para dentro daquilo e senti
uma dor excruciante por todo o meu corpo. Eu provavelmente fui levado para o
Gaki-dô, pois tudo que ouvia eram murmúrios cheios de ódio e desprezo e tudo o
que conseguia ver eram expressões cheias de ódio vomitando aquelas vis palavras.
Não dirigidos a mim, mas a muitas pessoas que nunca nem tinha ouvido falar o
nome. Eu não conseguia ver nada, apenas ouvir. Parecia estar em queda livre, eu
não sentia o vento passando por mim, mas eu sabia que estava caindo. Continuei
descendo, pelo que me parecia a estrada para o Jigoku ou o inferno, como
quisessem chamar. No meio das palavras de ódio, eu ouvi um choro que me guiou
ao único ponto de luz branco naquele mar de escuridão.
Pela primeira vez, eu consegui
mover meu corpo livremente e uma estrada de porcelana foi se formando em meus
pés enquanto eu andava para aquele lugar. Quanto mais eu me aproximava maior
ficava o som daquele choro. Senti meu corpo passar por uma espécie de barreira,
como um fio d’água morna. Só naquele momento percebi que meu corpo estava quase
congelando. Abracei meu corpo e comecei a tremer. Ajoelhei no chão sentindo o
frio rasgar-me até a alma. O choro tinha parado e ouvi alguns passos na minha
direção, mas o frio me impedia de pensar em outra coisa que não fosse em uma
poça de lava para me jogar dentro. Até que senti um toque carinhoso em meu
ombro e o calor foi voltando para mim.
Senti-me aliviado e fechei os
olhos, aproveitando aquela sensação única que nunca mais senti em minha vida.
Alguns segundos se passaram e abri os olhos, vendo-me em um belo jardim. Ao
fundo dele, eu via um castelo que reconheci como uma propriedade do Clã Garça e
só agora eu notei que aquele era o principal jardim do Clã.
Levantei os olhos e congelei. Eu
tinha uma ideia de onde estava, aquele parecia o mundo Ancestral, onde todos
nós, os Samurais, iríamos depois da nossa morte. Entenda que eu não tenho muita
certeza, mas já tinha lido bastante sobre tal lugar em poemas e afins. Muitos
disseram já ter pisado nessas terras, mas ninguém tem prova nenhuma disso. Aquela
que eu via era minha noiva, como ela tinha morrido? Por quê? Meus olhos ficaram
marejados e eu a puxei para mim, dando um abraço apertado e sentindo meu
coração se partir em pedaços que não poderiam ser unidos novamente. Sim, eu te
entendo; um Escorpião com coração? Parece verídico.
― Akatsuki, o que faz aqui? – eu
disse com a voz falha – Como você pode ter morrido?
O espírito não disse nada, apenas
me abraçou e passou suavemente a mão em minhas costas com ternura, mas em
seguida afastou-se dando um sorriso divertido, enquanto olhava para mim. Ela
abriu um leque negro que entrava em contraste com o seu cabelo branco e foi
então que notei a diferença gritante que existia. O cabelo desta mulher era
muito mais longo que de Doji Akatsuki, minha noiva. Tão liso e bem tratado que
parecia seda. O rosto das duas era o mesmo, mas seus olhos eram púrpuras e os
de minha Akatsuki eram verdes como Jade. Além disso, aquela mulher tinha uma
delicadeza surreal e sua beleza deve ter sido motivo de guerras quando ela
ainda caminhava entre os vivos. Uma verdadeira divindade estava parada na minha
frente. Ela fechou o leque em um estalo e seus finos e belos lábios se partiram
mostrando um sorriso brilhante. O som daquele leque trouxe-me novamente para a
realidade.
Eu estava levemente envergonhado
por ter confundido minha noiva com aquela mulher. Elas eram idênticas é claro,
mas apenas serviu para mostrar-me que meu amor por Akatsuki era fraco. Eu jamais
deveria confundi-la, mesmo que fosse uma cópia perfeita. Devo desculpar-me com
ela assim que possível, mas o que eu diria? “Encontrei uma mulher idêntica a
você e a abracei, sinto muito, confundi vocês duas”. Eu estaria morto se dissesse
algo assim, melhor deixar esse assunto quieto.
― Eu nunca vi um Escorpião chorar
pela perda de alguém – ela disse com um tom divertido – mas pela sua expressão,
agora você deve saber que não sou quem você chama.
― Quem é você? – eu disse frio
com os olhos apertados – Além disso, eu não lembro de ter chorado.
― Eu não esperava menos de alguém
daquele Clã – ela gargalhou – Você mudou completamente em um piscar de olhos.
Estava claro que ela não queria
dizer o nome, estranho não? Nunca conheci ninguém que fosse conhecido que não
gritaria o nome aos quatro ventos, mas ali estava alguém que não queria,
interessante. Olhei em volta, procurando algo que a reconhecesse, mas nada me
chamava atenção no cenário, a única coisa que realmente me deixou curioso foram
os cabelos brancos dela. Ela não tinha os cabelos pintados como a maioria dos
membros do Clã Garça, seus cabelos eram naturalmente brancos. A mulher notou
meu interesse em seus cabelos e sorriu.
― Encarando uma mulher com tanta
intensidade – ela ria – que atrevido.
― Encontrar alguém e recusar
dizer o próprio nome? – ele sorriu rebatendo – que grosseria.
Encaramo-nos um pouco mais. Seus
olhos analisavam cada curva de meu rosto. Parecia tentar puxar na memória
alguma semelhança com um ancestral, mas dado a expressão que fazia, ela deve
ter falhado miseravelmente. Não culpo ela. Aquela mulher deve ter vivido muitas
eras antes da minha, seu padrão de vestimenta e cores que usava não era algo
muito recente. Nunca entendi muito de história, mas posso dizer que certamente
ela deve ser alguém de 150 anos atrás, pelo menos.
― Eu não quero dizer meu nome - ela
cobriu o rosto com o leque deixando-me olhar apenas para seus olhos – será
aborrecedor se você me reconhecer. Diferente da minha Família, eu sou
envergonhada.
Isso não parece verdade. Balancei
a cabeça para afastar os pensamentos que vinham formando-se em minha mente.
Aquela mulher não tinha nenhuma hostilidade apontada para mim, mas minha mente
ativou-se sozinha para insultá-la com aquele comentário. Entenda que esse é um
dos métodos dos Escorpiões, porém aquilo me pareceu errado. Primeiro, porque
ela não tinha nenhuma hostilidade para mim, segundo, porque ela deveria ser uma
ancestral do Clã Garça. Mesmo sendo alguém de algumas gerações atrás nunca foi
muito sábio insultar alguém “mais velho”.
― Chama-me “Hime” – ela disse
virando um pouco o rosto para esconder a vergonha.
― Uma escolha interessante de
“nome” para alguém que se disse envergonhada, princesa – eu disse em deboche. É,
eu sei, acabou escapulindo, sinto muito.
Aquela mulher mudou
momentaneamente a forma como me olhava. Seus olhos tornaram-se afiados com uma
espada e perfuraram através de mim, mas logo sua expressão voltou a normalidade
e seu rosto inchou um pouco, irritada. Naquele instante, meus sentidos
Escorpiônicos ativaram-se para me defender, mas quando sua expressão suavizou e
notei suas bochechas levemente coradas e inchadas, eu não pude conter o riso.
Aquilo lembrou-me ainda mais de minha noiva.
A mulher a minha frente era tão
fácil de irritar quando Akatsuki, a semelhança agora era, para mim, assustadora.
Ela pareceu ainda mais irritada enquanto eu ria, mas já não conseguia mais
parar. Demorou um pouco para conseguir me conter e virei para a olhar. Hime já
não olhava mais para mim, seu belo rosto estava virado para outro lado olhando
para o vazio, ainda irritada comigo. Desculpei-me algumas vezes e a fitei um
pouco.
Seja quem fosse aquela mulher,
ela provavelmente era uma descendente direta de Lady Doji. Como eu poderia
saber? Simples. A tradição de pintar os cabelos de branco veio desde o
amanhecer do Império. Época a qual Lady Doji ainda era viva, ela tinha cabelos
brancos naturais, e seus descendentes também nasceram com tal característica.
Estas pessoas são muito raras atualmente, mas ainda existem. Os Garças, no
entanto, tornaram uma tradição pintar seus cabelos de branco para se
aproximarem ainda mais da fundadora de seu Clã. Você já deve ter notado, mas
caso não, me deixe falar; os Doji, família principal do Clã Garça, recebe o
nome de Lady Doji, pois ela foi a fundadora da Família.
― Brincadeiras a parte, o que eu
faço nas terras ancestrais dos Doji? – eu disse olhando em volta – eu sou um
Escorpião, eu deveria estar nas minhas terras ancestrais.
― Você não morreu, se é o que
quer saber – ela disse olhando para mim – Como sabe que está nas terras dos
Doji?
― Seu cabelo, ele não é tingido
de branco – eu respondi olhando de canto – eles são verdadeiramente brancos, o
que significa que você é uma descendente direta da própria fundadora do Garça,
o que é uma grande honra para mim. Esse lugar bate com as descrições das terras
ancestrais do Clã e eu também posso ver ao longe o Castelo Garça.
― Interessante ponto de vista,
continue pensando assim – ela sorriu – Você veio para este lugar receber meu
agradecimento.
― Eu não vejo motivos para isso,
Princesa. – eu ergui a sobrancelha – O que um simples Samurai como eu teria
feito para merecer sua gratidão?
― Você empunhou uma lâmina ancestral
Garça com destreza, Escorpião – ela pousou as mãos sobre as coxas.
Ah me desculpem, acho que me
esqueci de falar que nos sentamos. Não é fácil me concentrar em alguma coisa
quando me lembro daquela mulher. Nós estávamos sentados sob um guarda--sol azul
e um pouco de chá estava sendo fervido. Não me pergunte como isso é possível,
porque quando me lembra daquela cena tudo que eu vejo é aquele sorriso e fica
difícil sair do transe que fico quando isso acontece. Então não me force.
― Você ainda precisa ser polido,
mas eu posso ver um futuro brilhante em você – ela disse servindo chá – Você
deve ficar com essa espada.
Ela disse apontando para a katana
ao meu lado. Ela estava pousada à minha direita, em paralelo com minhas pernas.
O punho estava virado para trás apontando na mesma direção de minhas costas.
Deixe-me explicar algo que talvez seja interessante para você saber. A maioria
dos Samurais é destro, a mão direita é a dominante, sim, eu sei que pode ser
meio bobo explicar-lhe o que é destro, mas nunca se sabe. Isso se dá
principalmente por conta da escrita Rokugani e por um motivo cultural.
Muitos Samurais usam, portanto, a
espada presa à esquerda do corpo, pois puxamos com a direita. Não interrompa o
raciocínio, que falta de educação, menino. Droga, senti-me um velho sensei
agora. Quando se coloca a espada à direita, no caso dos destros, isso faz com
que seja mais difícil usar a espada no momento do combate, mas existe um sutil
detalhe em tudo isso. Perceba, quando a espada é posta à direita, no meu caso
que sou destro, e com o punho virado para trás; eu estou dizendo que terei uma
conversa pacífica com aquela pessoa.
Isto quer dizer que eu não
pretendo que essa conversa se transforme em algo sangrento, isto tranquiliza a
outra pessoa. Já se eu colocar ao lado que favorece o meu saque, demonstro toda
a minha hostilidade para aquela pessoa. Seja porque eu tenho raiva daquela
pessoa ou porque eu espero algo hostil vindo dela. Entendeu? Para você, algo
assim pode não ser interessante, mas para mim, esses pequenos detalhes são os
que fazem as coisas mais interessantes.
― Perdoe-me a indelicadeza, Princesa
– eu disse com um suspiro – se esta espada é uma arma ancestral Garça, ela deve
voltar para o vosso Clã e para seu atual dono, Doji Haruki.
― Essa espada pertence a você, que
a brandiu tão bem em muitos anos – ela balançou a cabeça – sua luta contra
aquela Seppun foi estupenda. Acordei depois de muitos anos presa pela maldição.
― O que era a maldição dessa
espada? – perguntei tomando um gole do chá.
― Eu a dei de presente para
alguém muito importante para mim, mas essa pessoa morreu em combate,
brutalmente assassinada, mesmo tendo alguém como aquele Homem a protegendo –
ela disse triste – em minha morte, meu espírito fundiu-se com a lâmina, pois eu
havia derramado minha essência nela quando a dei de presente. Eu queria dar boa
sorte para ela, mas provou-se insuficiente. Durante séculos eu vi muitos
morrerem empunhando essa espada, mortes horrendas.
― A maldição começou por você
acreditar que trazia azar a quem empunhasse a espada, não é? – eu coloquei a
porcelana ao chão e empurrei para ela devagar.
― Sim, e um sentimento estranho
começou a crescer dentro de mim quando eles começaram a me chamar de lâmina maldita
– sua voz carregava grande tristeza.
Hime parou de falar por um momento
e uma lágrima começou a escorrer por seu rosto lentamente. Ela fechou os olhos
parecendo lembrar-se de muitos momentos desagradáveis. Devem ter sido muitos
anos de sofrimento, tendo que passar sozinha por tantos insultos e injustiças
calada e sem forças para defender-se. Eu senti uma fisgada em meu peito.
Reflexivamente meus dedos foram de encontro às bochechas dela. Sua pele era
suave, quase como tocar em uma nuvem. Ela abriu os olhos assustada e olhou para
mim nervosa. Eu continuei impassível e limpei a lágrima que riscava seu rosto,
estragando aquela imaculada obra de arte criada pelas fortunas.
Ela continuou olhando para mim
ainda em choque. Deveriam haver muitos motivos para aquilo. Talvez um deles seja
porque foi tocada por um homem que não fosse o seu pretendente. Certo, eu já
havia a abraçado antes, por isso eu disse talvez. Poderia ser então porque,
como havia passado muitos anos sozinha, ela não esperava ser consolada da
tristeza que estava sentindo. Ela olhou para mim mais calma e seus olhos
pareceram agradecidos a mim mais uma vez.
― Minha mente voltou durante seu
duelo contra a Seppun, mas a maldição foi quebrada apenas depois que a espada
foi reforjada e o Gaki foi derrotado – ela sussurrou.
Hime fechou os olhos, enquanto eu
roçava os dedos em sua bochecha dando a ela um afago. Eu não sei quantos
séculos fazem desde que foi afagada, mas devo dizer que era quase como uma
sensação nova para ela. Apenas depois que notamos o que estava sendo feito
desvencilhamos o contato. Ela olhou para mim com os olhos fixos nos meus e eu
tremi. Eu então desviei do olhar dela e limpei minha mente antes de voltar a
olhar para ela. Aquilo estava ficando perigoso para a minha sanidade.
― Você viu tragédias demais
enquanto presa dentro dessa espada – eu suspirei, olhando para ela – ninguém
nunca conseguiu ouvir suas chamadas?
― Alguns, mas com o passar dos
anos eles não conseguiam mais me escutar e começaram a me culpar por coisas
ruins que aconteciam – ela olhou para o céu – mas você é o primeiro a chegar
nesse reino.
― Por falar nisso, o que é esse
lugar de fato? – eu disse olhando novamente ao redor. Aquele era um jardim
imenso, estendendo-se até onde minha vista alcançava. Apenas flores podiam ser
vistas e nenhuma forma de sair dali, sem destruir várias daquelas flores,
parecia existir. Às costas de Hime, bem ao longe, era possível ver o Palácio
Doji, era diferente daquele que me acostumei a ver. Aquela construção era mais
“divina”, por assim dizer, ficava acima de uma colina cercada de cerejeiras, um
prédio de puro branco e de incontáveis andares, como uma torre. De suas paredes,
bandeiras com o símbolo da Garça dançavam. Tudo naquele lugar lembrava a
romântica primavera, deixando em minhas narinas os aromas apaixonados das
flores.
Ela me explicou enquanto
tomávamos chá. Aquele reino ficava dentro da espada, era a morada dela. Ela não
sabia explicar como cheguei naquele lugar, mas provavelmente apareci lá quando
fui tragado para o Gaki-dô. Como ela tinha explicado antes, eu fui o primeiro a
pisar em sua casa, nada de especial. Provavelmente aconteceu por estar
segurando a espada que continha seu espírito quando cai no reino dos espíritos
famintos e para me salvar, a espada me levou para aquele belo lugar.
Continuamos conversando até que o chá acabou e eu sabia que estava na hora de
voltar.
― Eu devo voltar – falei
levantando-me – ainda preciso devolver a daisho ao seu dono.
― Você foi uma ótima companhia,
Sr. Escorpião – ela curvou-se se despedindo – eu espero encontrá-lo outra vez.
― Será uma honra encontrar a
senhorita mais uma vez – eu disse sorrindo – No entanto, acho que será
impossível, eu irei devolver a espada ao seu legítimo dono.
Quando eu estava de pé tudo ficou
escuro e senti meu corpo caindo novamente. Senti batendo em alguma coisa, abri
meus olhos tossindo. Eu estava na sala de Hida Samano e tinha acabado de destruir
a mesa dele. Fugir das garras do tigre para cair na boca do dragão, sorte a
minha. Eu gemi dolorido pela queda e tive a ajuda do Leão para me levantar.
― Achei que você tinha dito que
este homem morreu, shugenja – Hida samano olhava para mim irritado.
― Não parece ser fácil este
Escorpião morrer – o Kuni suspirou.
― Eu tomarei isso com um elogio –
eu ri.
Caminhei até a frente de Hida
Samano e me ajoelhei, colocando a testa ao chão e pedindo desculpas por ter destruído
sua mesa. Ele parecia irritado, mas um sorriso maligno apareceu em seu rosto.
Ele teve uma ideia interessante, aparentemente ele cobraria esta mesa de Doji
Haruki.