A
manhã do segundo dia chegou muito mais rápido do que eu esperava. Passamos a
noite, Akodo-san e eu, jogando Go e conversando na mansão de Doji Haruki.
Algumas gotas de saquê podem ter sido bebidas é claro, mas não creio que isso
influenciou em nada. A noite foi muito agradável, gueixas entretiveram-nos por
algumas horas. Devo dizer que algumas delas foram oponentes dignas em algumas
partidas de Go. Kuni Karasu evitou olhar para mim a noite inteira, achei
deveras divertido nota-lo evitando-me e é claro que algo assim não poderia ficar
sem piadas.
Mesmo ele evitando o máximo que pode, eu fiz de tudo para o fazer dirigir-se a
mim, foi uma pena vê-lo deixar a sala depois de ser provocado apenas um pouco.
Tão bonitinho, sabe, eu amo pessoas que são provocadas facilmente. Ao raiar do
sol, acordei com um chamado à porta de meu quarto. Dei um profundo suspiro e
fiquei olhando para o nada por algum tempo. Durante alguns segundos, eu não
consegui pensar em nada, como todo dia pela manhã, este era o momento que eu
mais espadava. Eu não pensava em nada, nem mesmo lembrava de nada. Vocês
provavelmente nunca perceberam esse curto momento em seus dias quando acordam,
mas para mim esse deveria ser o momento mais longo. Talvez seja esse pequeno
momento que me deixa aceitar tudo o que aconteceu ou que irá acontecer.
Levantei-me
devagar e caminhei até a porta para abri-la. Esperando para ser atendida estava
uma jovem senhorita de longos cabelos negros e um rosto de boneca. Ela limpou a
garganta para falar, mas petrificou bem na minha frente, seus olhos
arregalaram-se e seu belo rosto foi ficando vermelho. Eu bocejei coçando os
cabelos e ergui a sobrancelha olhando para ela. Eu tinha acordado abruptamente,
então não tive tempo de olhar como eu estava, tirando meu cabelo que estava
moderadamente arrumado, eu não poderia falar o mesmo da roupa que usava. A
cinta de pano estava frouxa, o que deixava o quimono muito aberto. O tecido
escorregava por um de meus braços deixando todo o meu peito a mostra e se eu
andasse um pouco mais, talvez a cinta se soltasse e acho que você provavelmente
não iria querer saber do resto, certo? Sorri para ela e pedi que esperasse um
pouco, enquanto eu concertava aquilo. Virei-me de costas e soltei a cinta fazendo
o quimono abrir para poder arruma-lo apropriadamente e não eu não fechei a
porta. Apenas virei e arrumei minhas roupas.
Quando
virei de volta para ela, a moça tinha os olhos trêmulos e estava a ponto de
desmaiar, pobrezinha. Eu balancei a mão à frente de seu rosto e foi quando ela
pareceu despertar do transe que eu submeti involuntariamente. Ela balançou a
cabeça limpando a garganta novamente.
— Haruki-sama, pede sua presença em seu
escritório – ela gaguejou.
Eu
sorria vendo quanto a menina evitava olhar para mim, mas seus olhos traíam sua
vontade lentamente sendo apontados para mim. Eu disse que iria assim que
tomasse um banho. Fechei a porta me espreguiçando sentindo todo o meu corpo
estalar, peguei uma muda de roupas e abri a porta vendo a menina ainda ali. Ela
foi me seguindo à passos rápidos enquanto eu me dirigia ao banheiro. Parei
subitamente a frente da porta e senti quando ela chocou-se em minhas costas.
Abri um sorriso olhando para ela por cima do ombro.
—
Você irá me seguir aqui também? - sussurrei para ela.
Ela
ficou pálida, seus lábios rosados abriram e fecharam trêmulos enquanto seu
olhos pareciam sem foco. Sua mente deveria estar girando enquanto tentava olhar
para mim, tentando de forma inútil esconder seus sentimentos naquele momento.
Virei-me de frente para ela, virando-me para ficar com o rosto na altura do
dela e com o rosto bem próximo, próximo o bastante para ela sentir a minha
respiração. Ela enraizou-se e não conseguiu mais se mexer, levou ambas as mãos
ao peito apertando o quimono nervosa. Abri um suave sorriso e aproximei meus
lábios do ouvido dela e assim, sussurrei-lhe “Talvez eu precise de alguém para
esfregar minhas costas”. Eu escutei sua mente despedaçar e seu rosto ferver
enquanto seus olhos trêmulos olhavam para mim com uma mistura de receio e
vontade. Abri ainda mais o sorriso, enquanto olhava para ela e virei-me logo de
costas entrando ao banheiro.
— Brincadeira
– disse fechando a porta corrediça ao passar – minha noiva não iria ficar muito
feliz ao saber de algo assim.
Eu
demorei um pouco no banho e ao sair me deparei com uma senhora a minha espera.
Ela tinha um olhar inquisidor, mas não disse nada, apenas me cumprimentou virando-se
para levar-me ao lorde da vila. Pedi desculpas pelo inconveniente e entreguei o
pijama. Uma coisa que devo deixar claro, porque tenho certeza que vocês podem
ficar em dúvida em relação à minha máscara. Eu a retiro apenas para lavar o
rosto e apenas por alguns segundos antes de devolve-la ao lugar que pertence, meu
rosto, portanto, em momento algum, fora esse, eu a retiro. Apenas para ficar
claro.
Vocês,
não do sangue, devem entender isso, para um Escorpião sua máscara é como a
armadura de um guerreiro. Ao tirá-la, você fica desprotegido. Já devo ter lhe
contado antes, mas as nossas máscaras tem um propósito especial, são nossas
armas e armadura para a sociedade. Todos usam máscaras sociais, mas apenas os
Escorpiões têm coragem de mostrar que as usam. Claro que não são todas as
pessoas que entendem a sutileza dessa mensagem, você entende agora porque eu
estou lhe explicando, nada mais.
Poucas
são as pessoas que veem um Escorpião sem a sua preciosa máscara e aqueles que
tem tamanha sorte, por assim dizer, devem sentir-se bastante honrados. Para
você, pode parecer um pouco hilário um Escorpião falar sobre honra, mas é assim
que as coisas são. Quando um Escorpião mostra seu rosto sem uma máscara, ele
demonstra confiar muito na pessoa em questão. Isso não significa ser
necessariamente da mesma família; pai, mãe, irmão. Você confia verdadeiramente
em alguém apenas por laços sanguíneos? Se sim, deixe-me dizer que você é um
tolo ou apenas teve sorte. Confiança não é algo que nasce, ela é construída
parte por parte. Apenas uma pessoa viu meu rosto sem máscara até hoje, e esse
alguém é a mulher que amo.
Guiado
até seu escritório, entrei e vi Doji Haruki pensativo olhando através das
frestas de uma janela para seu jardim. Ele tinha um olhar distante e abatido.
Talvez a notícia sobre a maldição tenha o abalado muito mais do que achávamos
ser possível. Doji Haruki nem mesmo pareceu dar atenção para a velha senhora
que me introduziu ante sua presença; apenas ficou ali parado contemplando algo
que nunca soube o que era, e talvez nem ele mesmo soubesse.
Sentei-me
sobre os calcanhares em uma confortável almofada e fiquei esperando ele sair de
seu transe. Estranhamente eu não precisei esperar tanto quanto eu achava ser
necessário. De certa forma, ele sabia que estava ali, mas parecia incomodado,
como se não soubesse como deveria iniciar a conversa. Ele estava inquieto, era
notório, pois seus dedos não paravam quietos e ele ficava trocando o peso de
uma perna para a outra.
— Eu
tive um sonho ontem a noite, Escorpião – ele disse com a voz distante – e devo
pedir-lhe por um favor que espero que possa fazer por mim.
Em
silêncio estava e em silêncio continuei. Eu não era um interprete de sonhos,
mal conseguia entender os meus, como poderia ajudar alguém a entender os seus?
Seu olhar ainda estava perdido pelo jardim e seu tom era vago. Talvez seu sonho
tenha sido algo revelador, mas que no lugar de ter lhe dado certa paz, apenas
plantou mais incertezas em sua mente perturbada pelos últimos acontecimentos.
Passei a língua em meus lábios e minha perna começou a tremer um pouco. Eu
estava nervoso? Fazia sentido, pois que tipo de resposta eu deveria dar? Eu
deveria comentar alguma coisa? Enquanto eu afundava-me em confusão, Doj Haruki
continuou.
— Eu
quero que você me conte tudo que aconteceu exatamente – ele virou-se, seus
olhos presos nos meus – O que realmente aconteceu com a ladra?
A
verdade chegou para mim com um soco, por um momento meu rosto pode ter revelado
alguma coisa. Eu era uma falha como Escorpião, preciso treinar mais. Por sorte,
parece que Doji Haruki não percebeu nada. Isso me fez notar que meu rosto
continuava tão imparcial quanto sempre era, eu não tinha que me preocupar
quanto a isto. Eu esperava, na verdade, que tal verdade nunca chegasse. Ter
algo assim revelado significava que minha sombra havia falhado, isso era sequer
possível? Não, e eu sabia muito bem disto. Falhar para ela era o mesmo que
morrer.
Muitas
perguntas rodaram a minha cabeça naquele pequeno intervalo de tempo entre
inspirar e respirar. Doji Haruki olhava diretamente para mim naquele momento,
tentando sem sucesso decifrar algo em meu rosto. Olhei diretamente nos seus olhos
e seu brilho de dúvida refletia em todo o seu rosto desconfortável com minha
falta de expressão.
—
Por quê? – perguntei.
— Eu
não sei se você acreditará em mim, mas eu sonhei algo estranho ontem a noite –
ele olhou para o canto da sala, novamente perdendo-se em pensamentos.
Sonhou,
não é? Doji Haruki deveria ser um ótimo mentiroso, porque eu não via nenhum
sinal de mentira com ele, ele evitava meu olhar porque ele mesmo estava
descrente sobre seu suposto sonho. Então ou ele era um ótimo mentiroso ou ele
estava falando a verdade. Meu treinamento estava apitando um sinal vermelho
enorme em minha cabeça, mas dentro de mim havia uma sensação estranha. Acalmei-me
por um segundo e meus pensamentos foram se organizando. Minha Sombra não havia
falhado, pois eu seria notificado em sonhos se acontecesse. Fechei os olhos,
respirando fundo e o selo que me ligava a Ela ainda estava em minha mente,
minha Sombra estava viva e conseguintemente sua missão foi um sucesso. Abri um
sorriso olhando para Doji Haruki que piscou algumas vezes atordoado. Eu dei uma
ordem mental para Ela, por conta do selo eu sabia que Ela estava próxima,
ordenei que vasculhasse se ninguém estava ouvindo nossa conversa e se estivesse
eliminasse.
—
Ele
ficou surpreso, mas havia uma pequena diferença na surpresa dele. Ele não
estava atordoado por Seppun Ayumi estar envolvida no roubo, estava assim porque
ele já sabia. Eu estreitei os olhos e a dúvida surgiu em mim.
— Será
que viste isto em teus sonhos, Haruki-sama? – perguntei procurando uma resposta
em seus sutis sinais de espanto.
—
Sim, meu sonho pareceu memórias – ele passou a mão nos cabelos grisalhos – eu
explicarei assim que terminar de contar a história. O que aconteceu com
Ayumi-sama?
Eu
então contei tudo o que tinha visto sem esconder dele, pois eu tinha uma leve
suspeita do que poderia ter lhe dado aquele sonho estranho. Ele estava
espantado com cada palavra minha, mas escutou tudo em silêncio olhando para mim
e buscando sinais de mentiras, mas era óbvio
que ele não encontraria mesmo que eu estivesse mentindo. Levou cerca de uma
hora para lhe contar tudo como realmente aconteceu.
—
Isto que você me contou é nada mais que a verdade, Escorpião? – ele perguntou
olhando para seus papéis em branco.
— Confie
em mim, eu não sou um mentiroso – eu disse sorrindo – Agora que sabe a verdade
Haruki-sama, o que fará?
Doji
Haruki fechou os olhos respirando fundo e abriu um sorriso. Ele colocou sua
preciosa daisho sobre a mesa entre nós dois. O sinal vermelho apareceu em minha
cabeça novamente, me deixando nervoso, mas o nervosismo não transpassava para o
meu rosto. É estranho, eu sei, mas o treinamento dos Atores Shosuro transforma
nossos rostos em porcelana nos deixando sem expressões a não ser que queiramos
tê-las. Se um dia você vir um Shosuro chorar ou estar feliz, desconfie se isso
não é apenas uma atuação. Doji Haruki olhou para mim e empurrou as espadas na
minha direção.
— Eu
quero que aceite esse meu presente, meu amigo – ele disse olhando paras as
espadas.
— Eu
agradeço profundamente o presente Haruki-sama, mas eu não posso aceitar – eu
respondi depois de algum tempo.
—
Você está errado meu amigo, você pode aceitá-lo, porque é um presente – ele
sorriu – leve-a com você como prova de minha amizade.
— Eu
não posso, meu amigo – eu suspirei – eu bem sei o quanto essas espadas são
importantes para ti, como eu poderia ainda me considerar vosso amigo se eu
tomar um bem tão precioso como este?
—
Duas espadas não valem o peso de uma boa amizade, Escorpião. Seu Clã sabe disso
melhor que nenhum outro – ele curvou-se para mim – por isso eu espero que você
aceite este presente, para que nossa amizade perdure por muito tempo.
— Se
é este o seu desejo, meu amigo – eu disse em dogeza – quem seria eu para
negá-lo.
Eu
tomei as espadas em minhas mãos e olhei para elas um pouco antes de colocadas
com a bainha virada para Doji Haruki, deixando-as á minha direita.
—
Diga-me, Haruki-sama... – eu comecei.
—
Apenas Haruki, Shosuro – e ele interrompeu – nós já somos amigos.
— Então você pode chamar-me Ichijou, Haruki –
eu disse – Por que você me perguntou pelo que realmente aconteceu? E por que me
deu suas espadas?
— Em
meus sonhos, eu vi tudo isso que você me contou, cada pequeno detalhe em
relação a sua luta – ele disse – mas houve momentos da luta que foram cortados
da visão.
Ele
foi explicando o que tinha sonhado e foi um alívio para mim saber sobre esses
cortes nas memórias. Os fragmentos da luta mostravam apenas meu combate honrado
e não os momentos que eu usava minhas ferramentas ocultas, como eu disse antes,
um alívio. Ele continuou falando sobre o sonho até que chegou a um jardim onde
ele encontrou-se com uma Fortuna, pois aquela mulher era linda demais para ser
apenas uma ancestral, quase divina. Minhas dúvidas estavam certas, pelo que
parece. Aquela mulher tinha manipulado Doji Haruki para me entregar as espadas.
Um espírito muito astuto. Eu tive que me despedir de Doji Haruki para ele
terminar de organizar seus documentos e eu deveria ter uma conversa com esse fantasma.
Cheguei
ao meu quarto, coloquei as espadas em minhas pernas enquanto estava em Lótus e
comecei a meditar. A sensação foi diferente dessa vez, eu senti sendo arrastado
novamente para aquele lugar e me deparei com um jardim diferente. Estava ainda
sentado em Lótus quando ouvi alguém caminhando entre as flores, mas não me
virei para ver quem era, eu já sabia. O cheiro das flores estava por todo o
lugar, mas o cheiro doce dela era distinto.
—
Você está se tornando muito ousado, Ichijou – a suave voz dela chegou aos meus
ouvidos – Colocar uma dama casada em suas pernas.
—
Até onde eu sei, a senhorita não é mais casada – eu falei tentando me
concentrar na meditação – e entre minhas pernas está uma espada, não uma dama.
Ela
riu passando para a minha frente e sentou-se, mas eu não ouvi o som da grama
sendo amassada, ouvi o som dela sentando em uma almofada. Abri os olhos e notei
que estávamos em uma sala, entre nós, chá.
— Você
sentiu minha falta tão rápido assim? – ela perguntou pegando uma xícara.
— E
quem não ficaria ansioso para encontrar uma mulher tão linda? – levei a xícara aos
lábios a olhando – mas o motivo de minha visita é outro.
—
Doji Haruki – ela bebericou o chá.
A
calma daquela mulher era tão impressionante quando a sua astucia, nem mesmo
piscou quando falei dos meus motivos para estar de volta naquele lugar. Claro
que ela sabia que eu viria, ela já sabia meu posicionamento em relação às espadas.
Eu já havia dito e, sendo inteligente, quanto a ela, eu sabia muito bem que não
tinha necessidade nenhuma de me repetir. Tomei todo o chá da xícara e o
coloquei de volta sobre a mesa, sentando mais relaxado, apoiando o braço sobre
um dos joelhos.
—
Você o manipulou para ele me entregar as espadas – eu disse suspirando.
— Eu
apenas mostrei o que você fez, tomando cuidado para não mostrar nada
desnecessário – ela riu – afinal, eu tinha que mostrar o tipo de herói que você
é.
— Eu
não sou um herói, eu sou um Ator e eu faço o que é necessário – disse a olhando
nos olhos – e eu não fiz aquilo para ganhar nada, eu fiz porque era o certo a
se fazer, mesmo tendo feito o que eu fiz.
— É
isso que faz um herói, meu belo Escorpião – ela riu – ele faz o que é
necessário sem precisar de nada em troca.
—
Isso não justifica ter manipulado Doji Haruki a me dar a espada – eu falei para
ela revirando os olhos.
— Eu
não o manipulei – ela falou escondendo um sorriso por trás do leque – apenas
mostrei para ele tudo o que aconteceu e mostrei sua épica batalha contra a
princesa dos Seppun.
—
Não faço ideia de como isso se chama na sua época – eu suspirei – mas o nome
disso hoje é manipulação. Doji Haruki amava essas espadas, isso foi cruel de
sua parte Hime.
— De
fato, eu conheço muito bem o amor dele por essas espadas, mas ele as deixaria
de lado temendo que a maldição de alguma forma pudesse voltar a assolar sua
vida – ela disse com o brilho da certeza em seus olhos – logo, eu presumi que
essas espadas teriam uma utilidade maior nas mãos de um jovem guerreiro, mesmo
sendo um Escorpião.
Isso
foi crueldade dela, mas eu não pude deixar de rir com seu comentário. Realmente,
eu poderia imaginar que era isso que Doji Haruki faria. Ele ficaria muito
temeroso que a maldição voltasse para as lâminas, e provavelmente as
trancafiasse em um depósito ou talvez em uma cripta, mas não tinha como ter
certeza. No entanto, aquele eco do passado tinha essa certeza nas mãos, talvez
ela pudesse prever o futuro ou algo do tipo.
A
oportunidade de passar tais objetos amaldiçoados caiu perfeitamente para
Haruki, como era um presente ele não poderia simplesmente livrar-se das
espadas, sua honra ainda era maior que seus temores. Sua solução era dar a
alguém e o fato de eu estar ali, e de alguma forma seus sonhos empurrarem tal
fardo para mim, seria muito bom para ele. Eu pude ver, quando ele me entregou
as armas, o alívio em seu peito, como se o peso de mil montanhas fosse tirado
de seus ombros.
—
Tudo bem, o presente já me foi dado e seria indelicado de minha parte
devolvê-lo – eu disse ajeitando minha postura – o que sugere fazer agora?
—
Treinamento – ela sorriu – que tipo de cenário prefere para ajudar no
treinamento?
—
Algo poético – disse levantando.
Ela
riu e fechou o leque com uma pancada seca. O objeto começou a brilhar com uma
fraca luz rosada e o quarto começou a esvair como nevoa. Balançando e começando
as modificações, não demorou muito para estarmos em um campo com infinitas e
gigantescas árvores, cerejeiras para ser mais preciso. O chão era coberto por
um tapete das folhas que caiam como pingos de chuvas e dançavam ao som da brisa
refrescante da primavera. Todas as árvores pareciam muito iguais para mim,
perder-se aqui significava nunca mais encontrar uma saída, como um enorme e
violento labirinto.
Havia
apenas uma árvore diferente de todas as outras. Seu tronco era um pouco mais
escuro e retorcido pela idade, estendia-se em direção ao céu e forma a perfurar
as nuvens. À sombra da grande árvore e a Hime estava sentado sobre um pano
branco esticado e um guarda-sol fazendo perfeitamente seu trabalho. O sol não
era forte e os raios passavam fracamente por entre as copas altas das
cerejeiras, mas a pele branca de Hime não aceitaria muito bem aqueles, mesmo
fracos, raios de sol.
—
Poético como você pediu – ela disse colocando a mão sobre uma caixa de madeira,
pegou uma xícara enorme de porcelana que servia para a cerimônia do chá,
tradicionalmente feita pelos Garças e criado pela própria Lady Doji. Os
utensílios eram belíssimos, mais do que qualquer um que já tenha visto em minhas
visitas à corte Imperial.
Aproximei-me
para ter uma visão melhor, mas as pétalas de cerejeira ao chão começaram
lentamente a rodopiar e um pequeno redemoinho começou a se formar. Não demorou
muito para sua força aumentar e várias pétalas rodarem junto aquilo formando
uma figura. Elas espalharam-se e um homem estava ali no meio, seus olhos foram
abrindo lentamente e sua expressão continuou calma, aguardando algum tipo de
comando. Ele tinha feridas pelo corpo todo e algumas flechas cravadas em suas
costas, mas seu rosto não mostrava nenhuma fraqueza.
—
Seu treinamento é simples – Hime disse olhando para mim – derrotar este homem
antes que eu termine o chá.
— E
se eu não conseguir? – eu perguntei andando ao redor do homem, mantendo uma
certa distância.
— Oh
querido, você não vai querer saber – essa foi a primeira vez que vi um sorriso
diabólico no rosto dela, mas não seria o último.
—
Certo – eu suspirei derrotado – Quem é ele?
— Eu
resolvi começar em um nível um pouco mais avançado, dada a sua habilidade – ela
apontou com o leque para o Boneco – este é o penúltimo dono da daisho que você
possui, Doji Daiori, momentos antes de sua morte.
— Eu
vou derrotar um quase morto? – perguntei intrigado.
—
Você vai? – ela perguntou um pouco surpresa e isso fez meu estômago revirar –
Se você o derrotar na primeira tentativa, eu ficaria muito surpresa.
Naquela
época, eu não sabia se deveria ter ficado com raiva ou impressionado por ela
ter dito aquilo por ela não acreditar que eu derrotaria um homem quase morto de
primeira, mas Doji Daiori era certamente habilidoso, coisa que descobriria em
alguns minutos. Uma daisho idêntica à minha apareceu na cintura do Boneco, e
ele imediatamente desembainhou com um som agudo de metal roçando em outro e
entrou em postura de combate.
—
Antes de começar, vamos fazer uma pequena mudança em suas espadas – Hime disse
e as espadas mudaram de forma para duas espadas retas um pouco mais curtas que
uma katana – eu ainda não tenho força o suficiente para mudar de forma no mundo
real, mas aqui não há nenhuma limitação de armas que queria usar na batalha.
—
Sem limitação, não é? – eu desembainhei lentamente as espadas – eu só preciso
pensar na arma que quero usar e elas mudam?
Ela
confirmou com a cabeça e terminei de tirar elas das bainhas. Foi quando notei
que o Boneco já tinha fechado toda a distância entre nós e desferiu um ataque.
Dei um mortal para trás colocando as mãos no chão e chutei o queixo do Boneco
que deu dois passos para trás, mas não perdeu tempo e atacou novamente assim
que se recuperou. Hime ficou olhando o tempo todo para mim, analisando cada
movimento que eu fazia enquanto a água ia fervendo. Eu não tinha tempo de olhar
para ela, pois Doji Daiori não deixava nenhum espaço entre os ataques, demorou
um pouco para memorizar seus ataques, mas quando terminei eu já estava
brincando com ele. Talvez por estar tão ferido ele não era um adversário muito
difícil, mas foi nessa observação que meu erro surgiu. Ele não estava assim
porque estava ferido, ele também estava analisando meus movimentos.
Desviei
de um de seus ataques e não consegui desviar de um chute que veio em minhas
costelas. O golpe me forçou a recuar e outro veio para cortar meu ombro.
Desviei com a lâmina da mão esquerda e com a outra dei um golpe em seu braço,
mas ele o puxou um pouco para trás e defendeu meu ataque com o punho da katana.
Eu não tive muito tempo para pensar quando um soco veio contra meu rosto. A
somatória da força com a surpresa me jogou ao chão, batendo com as costas na
grama e fiquei em uma péssima posição. Daiori atacou novamente, mas chutei sua
perna no joelho, ouvindo o delicioso som de osso sendo partido. Sua expressão
mudou para dor e afastou-se para trás. Levei as mãos para o lado da cabeça,
curvei meu corpo quase deixando minha barriga tocar a testa e fiz força nos
braços e com as pernas. Usando a força do impulso eu fiquei de pé novamente e
comecei uma chuva de ataques giratórios contra meu parceiro de treinos. Ele
defendeu alguns, mas a dor da perna quebrada o fez abrir a guarda e eu
aproveitei.
Distribui
alguns golpes em seu tronco e pernas, nada muito profundo, apenas não queria
acabar com a luta ainda e este pensamento me salvou de um adversário ainda pior
que este. Eu descobriria essa regra enquanto tomasse chá mais tarde, caso eu
derrotasse um adversário muito mais rápido do que ela julgava necessário, ela
adicionaria outro adversário. Meu tempo limite era até que ela terminasse de
preparar o chá, não antes, não depois. Ouvi quando ela começou a preparar o chá
e olhei por cima do ombro cometendo mais um erro. Daiori aproveitou minha
distração fazendo um corte em meu peito tão profundo que um pouco mais e ele me
cortaria em dois. Afastei estalando a língua, sentindo meu corpo enfraquecer
—
Você não deveria desviar os olhos de seu adversário, criança – ela riu pegando
o Chasen – Eu não preciso dizer que sua morte é uma falha automática e que a
punição será ainda pior, certo?