Hondo, minha cidade natal. Uma
pequena cidade satélite da “capital” do território Shosuro, onde ficava o
Castelo Shoruso e a maior escola de atores de todo o império de esmeralda.
Hondo era uma cidade movimentada, ali havia um anexo bem menor da escola de
atores, mas para propósitos mais familiares. Naquela escola apenas pessoas da
Família poderiam entrar, ali treinamentos mais específicos eram feitos e
obviamente pessoas de fora não eram confiáveis o bastante para aprende-los.
A carruagem dirigiu-se para uma
casa mais luxuosa e eu pude sentir o cheiro de diversas flores exóticas. Nunca
havia sentido o cheiro daquele lugar tão forte como agora e tão incômodo. Haviam
de fato muitos cheiros agradáveis, mas uma sensação de perigo não passava. Foi
ajudado a descer e recebido por uma das empregadas da casa. Ela deu-me uma
longa reverência, mas ficou ali parada, eu quase podia ver a confusão em seu
rosto.
― Meu senhor? – ela gaguejou com uma
voz tensa.
― Eu preciso que me guie até meu pai –
eu disse sem rodeios – não estou em condições de ir sozinho no momento.
Fiz um sinal para que ela fosse na
frente, mas disse que se mantivesse próxima. Não precisava dar satisfações a
ela de meus motivos, mas não conseguiria ir sozinho ao encontro de meu pai como
estava. Caminhamos por algum tempo até que o cheiro das diversas flores no
jardim ficou mais fraco. Eu não posso dizer como a casa de meu pai estava nesse
momento, mas me recordo como ela era alguns anos atrás e conhecendo o tipo de
pessoa que aquele homem era, dificilmente deve ter mudado muita coisa.
Um grande e belo jardim com diversos
tipos de flores raras enfeitavam a entrada e os arredores da mansão, dando cor ao
lugar. Tudo mais era preto e vermelho o que dava um proposital receio para quem
entrava. Um assovio constante vinha daquela casa. Os pilares que sustentavam a
entrada da casa e três portais como os vistos em templos tinham diversos
orifícios por onde o ar entrava e formava uma melodia que se abatia sobre os
ouvidos dos visitantes. Os sons não eram desconexos, eles se entrelaçavam em
uma melodia harmônica que dependia da força do vento.
Um caminho pavimentado de pedras
cinzentas e porosas passava por entre os pilares e cortava ao meio o jardim. A
pequena estrada levada ao alpendre que dava acesso à casa e uma pedra grande,
talvez de um metro ou um pouco mais, que podia ser usada de degrau. Ali eram
deixados os chinelos de quem entrava, pois seria um desrespeito manchar o
belíssimo e polido chão de madeira escura tão cuidadosamente limpo. Na mansão
haviam muitos cômodos para serem explorados, o principal ficava no primeiro
prédio, eram três no total. O primeiro que era o acessível já de cara tinha um
amplo salão onde eventos formais, como jantares, eram sediados. Uma sala para
receber visitas ao lado.
A mansão era quadrada como a maioria
das que você poderia encontrar pelo império. Nesta existia um amplo espaço onde
ficavam vários canteiros de flores e alguns bancos para sentar-se à sombra de
uma grande árvore central. Suas folhas eram em tons de vermelho e laranja
acompanhando a atual estação, não demoraria muito para chegar o inverno. Em
Rokugan, esta era a estação mais severa, samurais normalmente eram convidados
para alguma Corte e ali permaneciam o inverno inteiro. Os poucos servos que
tinham a sorte de servir um bom senhor também podiam ficar tranquilos durante
esse período, e para todos os demais, a vida ficava ainda mais difícil.
Aos fundos ficava anexado à casa um
prédio que servia de morada para os servos de meu pai e ao lado havia o dojô
onde ele dava aulas regularmente. Treinei naquele lugar por algum tempo, mas
fazem tantos anos que já não lembro muito bem como era ali. Fui levado até a
sala de visitas e sentei-me em uma confortável almofada enquanto esperava pelo
anfitrião. Eu já devo ter dito algumas vezes, mas eu não me dou muito bem com
meu pai.
Coloquei minha espada ao lado de meu
corpo à esquerda e não à direita, nesse lugar eu precisava ser cuidadoso a todo
instante. O silêncio reinou na sala por um bom tempo, ninguém ia se aproximando
nem parecia haver ninguém ali; silêncio demais eu diria. Algo à minha frente me
incomodava, mas eu não sabia dizer o que era. Havia alguém ali parado, mas eu
não ouvia nada; quando escutei alguém respirar. Minha mão voou para a espada,
ouvi o roçado de pano na mesa a minha frente e alguém pisar em minha mão,
impedindo-me de pegar a espada.
― Eu poderia ter te matado dez vezes –
uma voz áspera veio – você está ficando mole.
― E não aproveitou nenhuma das dez –
disse sarcástico – você está ficando velho.
― Hunf – senti o peso sair de minha
mão que ia ficando dormente – Pena que foram seus olhos e não sua língua que
ficou podre.
― As senhoras devem estar achando
fascinante esse peso extra – disse com um sorriso balançando de leve a mão –
talvez esteja mais pesado que Hida Samano.
Eu o ouvi sentar-se na outra ponta da
pequena mesa, ele passou os dedos pelos cabelos e riu. O acompanhei por um
tempo até que ambos paramos ao mesmo tempo. Minha espada já estava para ser
sacada e eu ouvi o mesmo do outro lado. Ele não estava mais distante que um
braço de mim, com um balanço eu poderia o acertar. Eu sei que ele estava
pensando o mesmo, ouvi atrás de mim passos, alguém estava vindo e aquilo foi
distração o suficiente. Ouvi o assobiar do vento a minha frente, senti o frio
correr minha espinha, não havia tempo de sacar minha espada. Estendi minha mão
para frente e agarrei um pequeno objeto metálico, uma agulha. Ela estava
banhada de veneno, minha mão havia ficado dormente e senti meu músculo tremer
um pouco.
― Apenas sorte – ouviu meu pai dizer.
― Sorte também é uma habilidade,
Shoichiro-sama – disse seu nome com certa intensidade – não é você mesmo quem
costuma dizer isso?
― Pare com isso – ele falou enjoado – você
me deixa doente falando meu nome.
Depois de alguns momentos ouvi a porta
ser arrastada para o lado e um doce cheiro entrou na sala. Misturado ao perfume
suave da serva veio o cheiro do chá. Confesso ter ficado desapontado de ser
servido com chá e provavelmente meu pai notou aquilo. Apenas duas coisas nós
concordávamos apesar de uma delas sempre nos fazer brigar. Saquê era melhor
para conversas e Akatsuki, como eu dizia, uma das coisas que sempre nos fazia
brigar. Recebemos o chá junto com alguns dangos, ainda era muito cedo e o
almoço custaria a sair. O Anfitrião mandou trazer saquê enquanto bebíamos o
chá. A serva curvou-se longamente antes de sair e fechar a porta, apenas quando
ela já estava longe ouviu meu pai tomar o chá. Virei a cabeça para a xícara e
estiquei a mão, primeiro cheirei-o discretamente.
― Não está envenenado – meu pai disse
calmamente – você não merece uma morte tão limpa.
― Você menos ainda – disse tomando um
gole do chá.
― Agora fale o motivo de ter se dado
ao trabalho de vir de Tochigi até aqui para me mostrar esse rosto desagradável
– ele falou colocando o copo à mesa.
Girei a xícara em minha mão e continuei
concentrado um pouco mais no gosto amargo do chá. Ergui uma sobrancelha com
aquela pergunta. Demorei uma semana para chegar aqui, era impossível que a
carta de Akatsuki já não tivesse chegado e ainda mais improvável que aquela
raposa velha não tivesse lido no mesmo instante que a recebeu. Suspirei, era óbvio
que ele estava me testando, ainda mais óbvio o que ele realmente estava
querendo. Pousei calmamente a xícara à mesa e levei um dango à boca. Eu não
precisava enxergar para saber que tipo de cara ele estava fazendo. Em minha
mente, conseguia ver outro Eu a minha frente, com um sorriso enorme debochado
de minha atual situação.
― Vamos, diga – o seu sorriso era
perceptível no tom que usava.
― Eu preciso de sua ajuda, pai -eu
disse com uma careta.
― Ótimo – ele disse gargalhando – e
pensar que uma hora você daria o braço a torcer e pediria ajuda para mim.
― Sorte sua que essa casa é tão alta –
dizia enquanto mastigava outro dango.
― Hunf, insultos baratos não irão
afetar-me nesse momento, criança tola – ele disse – e não fale com a boca
cheia, você tem cinco anos?
― Onde você ficaria se esse fosse o
caso? – disse movendo um pouco o canto da boca.
― Certo, eu já ouvi o que queria – ele
disse com desprezo – Mas só sua humilhação, infelizmente, não é o bastante para
mim. O que me dará em troca?
― Eu posso ajudá-lo com a compra da Canção
dos beija-flores – disse colocando o espeto de bambu.
Ele que estava tomando um calmo gole
de chá parou por um segundo, e ouvi algo bater mais forte e acelerado. Poderia
aquilo ser o seu coração? Você se admira por eu estar tão surpreso? Escute bem,
cobras tão traiçoeiras quanto aquela Peste não possuem esse tipo de coisa. Seu
sangue flui pelo corpo apenas com a força de suas veias e o sangue na verdade
não é nada mais do que uma mistura de poderosos e mortais venenos. Eu saboreava
a surpresa dele, tinha um gosto muito melhor e mais doce que aquele chá
servido.
Ele rapidamente recuperou a compostura
e pousou o copo à mesinha. Eu experimentei mais uma vez o olhar venenosamente
penetrante daquele homem, talvez ele tivesse uma ponta de raiva, apenas talvez;
um único homem havia despertado sua ira uma vez, mas ele já não se encontra
mais entre os vivos. Duvido muito que apenas uma pequena informação como
aquela, por mais importante que fosse, o deixaria irritado.
― Oh, meus parabéns por ter ouvido
falar de meu interesse naquele lugar – ele pareceu levemente surpreso – Mas
você acha ser capaz de cumprir essa parte do acordo?
― Eu não entendo porque tanta
surpresa, eu sou o seu melhor aluno – disse erguendo a sobrancelha – e eu não
estaria oferecendo minha ajuda se eu não me achasse capaz.
― Acho difícil, eu irei ter que ficar
com a sua língua – ele falou com um pouco de raiva.
Eu apenas sorri para ele, e para mim
pareceu que sua raiva apenas aumentou. Eu havia ganho aquela rodada, mesmo ele
estando muito bem “posicionado” eu ainda consegui virar o jogo ao meu favor.
Ele bateu os dedos contra a mesa. O ouvi levantar-se e não consegui reagir
quando sua mão veio agarrando-me pelo rosto. Senti a pressão de seus dedos
esmagando minha pele, mas continuei em silêncio. Ele mandou que abrisse os
olhos e assim o fiz. Sua reação não foi de tanta surpresa quanto a de meu Sogro,
para mim pareceu até estar gostando de me ver daquele jeito. Nem mesmo senti
seus dedos tremerem quando olhou profundamente em meus olhos, eu posso dizer,
pois pareciam que agulhas estivesse sendo apertadas contra eles.
― Seus olhos não têm cura, você vai
continuar cego não importa o que tente – ele disse soltando meu rosto – Os
danos foram muito severos e creio que ninguém possa fazer um tratamento
milagroso, nem mesmo os Mestres da Água do Clã Fênix.
―Que bom que meu estado pode pelo
menos diverti-lo – eu respondi.
― Nunca, eu estou muito preocupado – ele
disse rindo – com Akatsuki.
― Imaginei – balancei a cabeça –
Então, qual a sua resposta?
― Ainda não sei – ele disse pensativo –
essa proposta não me parece nada vantajosa. Você não deve conseguir um preço
melhor que o meu.
― Por que não apostamos, então? – sugeri
tomando outro gole do chá – se eu perder eu pagarei trinta por cento do valor
total a você.
― E com o que vai me pagar? – ele
perguntou sarcástico – Mesmo juntando todas as suas atuais economias você não
teria tanto dinheiro para pagar.
― Eu tenho certeza que poderíamos
pensar em uma maneira apropriada para quitar essa dívida – eu falei calmamente.
― E o que você quer se vencer? -ele
perguntou interessado.
― Quarenta por cento do lucro – eu
disse.
Eu ouvi o exato momento que o coração
dele pulou e seu corpo acompanhou o salto. Aquilo era obviamente um valor
exorbitante. O lugar que estamos discutindo, Canção dos Beija-flores, é a
terceira maior casa de gueixas de Ryoko Owari, o atual dono parece estar
passando por sérios problemas administrativos, obviamente essa era uma
informação muito escondida que ambos, meu pai e eu conseguíamos através de
muitas conversas e subornos. Esta história já era velha, os boatos em torno do
Proprietário já circulavam, mas ele fazia questão de sempre negar cada uma das
histórias que apareciam, mas nós dois sabíamos a verdade.
― Dez por cento – ele disse
― Quarenta e Cinco por cento – eu
retruquei.
― Pare de brincadeira, garoto – meu
pai bateu com a mão à mesa – Você tem ideia do que está pedindo?
― Eu sei muito bem quanto estou
pedindo – disse com um sorriso – e você sabe muito bem meus motivos.
― Saber não significa concordar – ele
disse – eu posso oferecer quinze por cento.
― Vinte e Cinco e você me deixa saber
das informações que coletar – falei.
― A quem você puxou ser desse jeito? –
ele perguntou com um suspiro.
― A vocês dois – eu disse dando um
fundo gole no chá.
Ele ainda parecia insatisfeito com
aquele valor, mas eu não podia baixar mais. O lucro era alto naquele lugar, já
havia visitado algumas vezes para ver que tipo de estabelecimento era. Não foi
uma surpresa quando descobri ser um bom lugar, ficava em um ponto estratégico
na ilha dos prazeres. Falarei mais sobre isso quando estiver contando sobre
Ryoko Owari, existem muitas coisas interessantes para falar, e muita coisa
aconteceu na noite que estive lá. Vários motivos levaram àquele lugar não ser
um dos melhores, mas assim que fosse adquirido por nós isso poderia mudar
rapidamente.
― O que está me pedindo é impossível –
ele disse tomando chá.
― Nós dois sabemos que não é –
coloquei a xícara vazia de volta à mesa – Você sabe muito bem que o dono não
venderá à um Escorpião.
― Então vamos apostar – ele disse –
Sua punição será maior caso não consiga e termine piorando a negociação para o
meu lado. Mas vamos deixar isso de lado um pouco. Tenho uma conhecida hospedada
aqui que pode ajudá-lo.
― Se você já estava pensado em me
ajudar deveria ter dito logo – disse com um longo suspiro.
― E perder minha moeda de barganha? –
ele riu – Você ainda não está completo, ainda precisa ser muito melhorado.
― Sou seu filho ou objeto de testes? –
perguntei.
― Objeto de testes – ele falou
rapidamente.
― Nenhuma surpresa – disse balançando
a cabeça – Então, vamos ver essa sua “conhecida”?
― Sim – ele disse calmamente – E
presumindo que você será incapaz de ir sozinho, eu terei que o levar.
Podia-se ouvir o desgosto na voz dele
ao dizer aquilo. Quando terminamos nossa conversa a serva entrou trazendo o
saquê que ele havia pedido. Ficamos um pouco mais até secar aquela garrafa e
fomos em direção ao dojô. Segui meu pai da melhor forma que pude, seguindo os
sons de seus passos. O acesso ao dojô ficava na lateral do prédio principal,
ligado por um longo corredor coberto. A esquerda ficava um campo de terra por onde
se praticava tiro ao alvo e à direita havia um campo gramado pequeno.
Normalmente eram feitos alguns debates onde meu pai levava seus alunos e
passavam parte da manhã discutindo.
Eu já havia participado daqueles
debates algumas vezes quando era mais jovem, mas apenas como ouvinte. Meu pai
dizia que o cheiro das flores em volta e o cheiro do chá que era servido relaxava
a mente e forçava alguns a soltarem seus segredos com a mais simples das
perguntas. O treinamento aqui era aprender a mentir mesmo nessas circunstâncias.
Você pode estar cético quanto a funcionalidade de tais mecanismos, mas eu posso
lhe assegurar da efetividade. Para um Escorpião, distorcer informações e
controlá-las dever ser como respirar e mesmo os melhores suavam para enganar o
anfitrião dos debates.
Eu não pude acompanhar debates futuros
por alguns motivos, além de viajar para as terras Matsu onde fiquei sob tutela
de minha mãe, meu pai me impediu. As “aulas” continuavam progredindo até que os
melhores cortesões fossem formados e então eles iriam participar de uma turma
ainda mais avançada. Mesmo que eu seja um cortesão meu pai dizia que minha
especialidade era outra e que eu não tinha talento para o que estava por vir
naquelas aulas.
Meu pai abriu a porta corrediça do dojô.
Lembro desse lugar tão bem que chega a ser assustador. Aqui foi onde tive boa
parte de meu treinamento para ser Ator. Esse lugar era muito maior que o dojô
de minha mãe, o que poderia ser estranho para alguns. O piso era feito de
madeira escura e não era tão polido quanto o da construção principal, aqui era
um ambiente de treino, qualquer deslize poderia causar um acidente. Por dentro
o lugar também era bem escuro devido a pintura e a bandeira com as cores do
Clã. Haviam claro, janelas para iluminar, mas elas deviam ser abertas para
cumprir sua funcionalidade.
― Você deveria ter aberto as janelas,
Noami – ouvi meu pai dizer.
― Eu não preciso de luz para enxergar,
― Infelizmente sim – ouvi meu pai
dizer – ouviu isso de alguém?
― Suas energias são idênticas – ela
riu – ou ele seria seu filho ou seria uma perfeita cópia sua. Aproxime-se
menino.
Eu não podia dizer exatamente onde ela
estava e seria demorado tentar encontrá-la sozinho. Meu pai viu minha
dificuldade e com um suspiro ajudou-me a chegar à frente dela. No caminho até ali
meu pai havia falado várias coisas sobre aquela mulher. Ela tinha nascido sem a
visão e sofreu bastante na infância por isso, chegando até a ser abandonada
para morrer. Ela conseguiu, no entanto, achar o caminho através da misteriosa
montanha do Clã Dragão e encontrar o Templo Togachi, assim tornando-se um
membro oficial do Clã. Ela ainda era cega, não havia cura para a sua condição,
mas de alguma forma ela conseguia “enxergar”. Meu pai não entendia bem o
processo e nunca perguntou a ela por não ter interesse, e porque ela não
ensinava a ninguém mais. Meu pai presumiu que porque eu precisava daquilo talvez
conseguisse convencê-la a me ajudar, mas isso era comigo.
― Sente-se – ela falou e fiz o que ela
me pediu – Você pode sair Shoichiro, eu irei conversar com sua criança por
algum tempo.
― Tudo bem – ele disse – presumo que
vocês não irão almoçar, nesse caso.
Ele não demorou a sair, nem mesmo
esperando meu protesto sobre não almoçar. Eu teria que fazer jejum? Que ótimo. Maldita
raposa, ele tinha isso planejado o tempo todo; parece que eu baixei a minha
guarda. Passou pela porta e a fechou saindo dali. Fiquei sozinho com a mulher à
minha frente que não disse nada, ela parecia esperar meu pai distanciar-se
ainda mais. Eu não ouvia mais os passos deles, mas de alguma forma eu sabia que
ela conseguia. Naomi então virou-se novamente para mim.
― Diga-me, como perdeste a visão,
menino? – ela perguntou.
Eu não sabia o que dizer para ela,
sinceramente eu não fazia ideia de como essa tragédia me aconteceu. Eu apenas
podia supor sobre os motivos e resolvi contar para ela o pouco que sabia sobre
o ocorrido. Contei-lhe sobre tudo o que tinha acontecido de maneira sucinta,
não queria perder muito tempo com detalhes irrelevantes e tinha certeza que ela
também não. Naomi pareceu muito interessada pela morte do Oráculo do Vazio e o
efeito que isso teve pós morte.
― Então o que senti naquele dia foi
isso – ela murmurou pensativa – faz todo o sentido agora que você falou, mas a
morte do Oráculo não deveria acarretar a um evento dessa magnitude.
― O que você quer dizer? – perguntei confuso
– Eu pensei que os Oráculos fossem a personificação dos próprios elementos.
― Sim, eles são – ela respondeu – mas
se coisas como essas acontecessem sempre que um Oráculo morresse ou ainda pior,
fosse morto, provavelmente eles estariam banidos do Império.
― Ah, você quer dizer por sua morte
ter jogado tantas pessoas em um semi plano do Vazio – confirmei.
― Você parece bem calmo com isso – ela
comentou com um leve sorriso.
― Ficar pensando sobre isso não vai
ajudar em nada – disse com um leve sorriso – Eu apenas cairia em desespero sem
necessidade.
― Muito bem dito – ela riu – agora me
responda algo simples. É tão ruim assim não ver nada?
― Essa é uma pergunta difícil -
suspirei erguendo a cabeça – Talvez não seja tão ruim. Eu consigo ouvir melhor,
consigo sentir cheiros mais fracos e mesmo diferenciar vários cheiros e sons de
uma só vez, mas eu me tornaria inútil para certas coisas. Perceber mentiras
seria mais difícil, notar que alguém esconde alguma coisa. Eu seria apenas um
peso para meu Clã.
― Você e seu pai são exatamente iguais
– ela pareceu segurar um riso – um amigo de seu pai disse que por um segundo
você chegou a ver.
― Eu não sei se posso chamar aquilo de
ver – indaguei – Parecia muito mais um mundo de chamas ou fumaça. Não conseguia
ver nenhuma forma, mas de alguma maneira eu conseguia sentir tudo o que tinha à
minha volta.
― Hmm... – ela ficou pensativa – e
pensar que você conseguiria fazer isso sozinho. O que sentiu antes disso?
―
― O Vazio em você é muito mais forte,
não me espanta ter conseguido, pelo menos uma vez – ela disse – Mas não fique
muito animado, isso não é algo natural. Você não era assim antes.
― Nós já nos encontramos antes? –
perguntei.
― Você era muito pequeno – ela
respondeu – Talvez isso tenha acontecido depois de mergulhar diretamente no
próprio Vazio. Estar vivo mesmo indo àquele lugar é algo admirável, mesmo que
tenha voltado com tantas sequelas.
― Não existe uma cura, então? –
perguntei.
― O Vazio não é uma infecção nem uma
doença que precise de tratamento – ela respondeu – Talvez se você não tivesse
mergulhado nele tão ferido você não estivesse nesse estado. Ainda não consigo
entender o que o salvou.
― Não seria o destino? – perguntei com
um leve sorriso – Afinal, talvez as fortunas tenham grandes planos para mim.
Eu admito que eu estava sendo um
pouco... muito sarcástico com essa afirmação. Para mim, toda essa conversa de
destino e que os deuses têm grandes planos para alguém não é nada mais que uma
grande mentira que essas pessoas que se iludem com o Tao Shinsei pensam. Não
existe isso de destino, talvez sim existam algumas pessoas que são protegidas
pelas fortunas, mas dizer que elas estão destinadas a algo maior não faz nenhum
sentido para mim. Se for o caso, o destino é muito cruel e eu prefiro acreditar
que uma força sem inteligência simplesmente não nos afeta em nada.
― Eu não sei onde você quer chegar
menino, mas eu particularmente não acredito em nada disso – ela disse áspera –
Algumas pessoas podem até ter suas vidas escritas, mas não são todas. Cada um
escreve a própria história sobre sua vida.
― Sinto muito por lhe colocar no mesmo
patamar que os lunáticos, então – baixei um pouco a cabeça.
― Eu o perdoou, mas comece a segurar
sua língua – ela falou – ou eu não irei mais ajudá-lo.
― A senhora irá me ajudar? – perguntei
confuso – achei que não houvesse uma “cura” para o meu problema.
― E realmente não há – ela confirmou –
seus olhos nunca mais irão enxergar novamente, suas feridas talvez nunca sarem.
― Eu fico muito feliz que tenha
aceitado me ajudar – curvei-me ainda mais enquanto a agradecia – porém eu não
vejo como irá me ajudar nesse caso.
― Então você prefere ficar como está?
– ela perguntou.
― Se realmente existe uma maneira eu
ficarei agradecido de me mostrar – respondi.
―Então eu irei mostrá-lo – ela falou.
― E o que eu poderia dar-lhe em troca
de tamanha ajuda? – eu perguntei.
― Nada – ela respondeu de imediato.
― Nada?! – perguntei pasmo.
― Você parece confuso, menino – ela
disse sorrindo.
― O que fará por mim não é algo que
alguém faça sem motivo – eu falei.
― Claro, eu tenho meus motivos – ela
riu – Apenas não desejo nada em troca. O que você realizará será algo
interessante.
― O que eu irei realizar? – perguntei.
― Eu não sei – ela riu um pouco mais –
isso que o torna tão interessante.
Nota do Autor:
Segunda Memória do Combo Natalino.