Sayo-san guiou-nos pela mansão. O
clima no geral não era muito animador, todos pareciam afetados pela doença da
filha de Sayo-san, Hanako. Seu nome foi escolhido muito bem, dado seu
significado, poderia até ser dito que ela era a flor central de toda a mansão.
Não posso dizer com certeza que ela, o seu estado, era o que afetava tão
negativamente as emoções das pessoas pela mansão. Até mesmo os servos pareciam
muito abatidos e cabisbaixos, devo dizer que não me surpreende tanto assim. Um
servo verdadeiramente leal aos seus senhores sofrerá tanto quanto os mesmos em
um momento como aquele. Talvez seja uma forma inconsciente, e perdoe-me se
estou dando muito alarme a uma pequena impressão que tenho, de o servo colocar
os senhores como parte da própria família.
Como eu disse antes, um
pensamento como esse poderia causar muitos problemas dependendo da pessoa que
escute algo assim. Muitos Samurais, eu diria que uma parte enorme da Casta,
ficaria muito irritado por ouvir algo assim. Alguns, a minoria, isso eu posso
dizer com certeza, acharia a atitude uma coisa boa, mesmo que fosse
inconsciente. Entenda a lógica por trás de um pensamento assim; ver uma pessoa
como tarde de sua família mostra que definitivamente haverá um zelo muito maior
pela saúde da pessoa em questão, por esse motivo os membros dos Clãs tratam-se
como parte da mesma família. Sempre existem exceções é claro, vale a pena
ressaltar isso.
Já no quarto a visão daquela menina
tão debilitada era de partir o coração. Ela estava bem magra, seus olhos fundos
e sem vida. Ela dormia, mas parecia acometida por um pesadelo que não lhe
permitia ficar quieta. Seus espasmos pareciam ser o motivo de estar sempre tão
cansada, isso era o que dizia os outros médicos que vieram vê-la. Sua pele era
pálida e quase seca. Seus lábios estavam rachados e secos, como se não houvesse
tomado uma goda d’água nos últimos dias. A doença estava a deixando magra, não
tinha forças nem mesmo para mastigar. Tudo o que tinha ingerido até aquele
momento era líquido e fino, pois se fosse grosso demais ela engasgaria e teria
problemas no estomago.
Sayo disse que ela estava
recusando-se a comer, mesmo que fosse em pequenas quantidades. Ela dizia que a
comida sempre tinha um gosto horrível e descia rasgando sua garganta. Sayo
disse que nenhum dos médicos que a examinaram sabiam o motivo. Sua garganta não
parecia inflamada, mas algumas vezes quando ela foi forçada a comer, algumas
horas depois a menina chegou a vomitar um pouco de sangue. O último médico que
a examinou disse que ela deveria apenas comer coisas leves e em pequenas
quantidades, apenas o suficiente para ela manter-se minimamente saudável.
Mayuu debruçou-se por cima dela e
começou a examinar a pobre menina cuidadosamente. Devo frisar bem a sua idade,
pois qualquer desavisado que a olhasse muito rápido acharia que era uma senhora
de idade. Mayuu então afastou-se um pouco e começou a recitar uma oração aos
kamis, pedindo pela intervenção deles. Seus olhos então brilharam, uma luz
calorosa, de esperança e consolo. Sayo tremia um pouco enquanto parecia recitar
uma oração pessoal as Fortunas para desejar sorte a Mayuu.
Pude ouvir sussurros, eram
diferentes daqueles na noite passada, esses eram cheios de vida e energia. Era
a mesma sensação que eu tinha quando eu estava treinando. Não era tão intensa quanto aquela, mas posso
dizer que passava o mesmo sentimento, com certeza. Imersa em seu próprio
“mundo”, Mayuu ignorava todo o resto para forcar-se apenas no espírito que
invocava.
Para mim, aquele era um momento
de fraqueza de um shugenja que poucos aproveitam, você já deve entender o
motivo. Shugenjas são muito raros, pois para iniciar o treinamento, creio já
ter comentado isso antes, é necessário ter aptidão. Talvez com um pouco de
força de vontade um jovem aspirante consiga ter o necessário para iniciar o
treinamento, mas isso é apenas uma hipótese minha. Por serem tão raros,
Shugenjas são muito preciosos e zelados pelo Clã que possui sua força. Eu diria
que até mais que os Bushis. Você pode achar que isso seja cuspir, de certa
forma, naquilo que eu sou, mas perceba que comparado a estas pessoas, Bushis
são descartáveis.
Obviamente que um bom Bushis é
tão importantes quanto um Shugenja, mas diferente de um invocador, um membro de
Clã pode muito bem ser treinado, mesmo que não possua nenhum talento para se
tornar um Bushi. Este se tornará um combatente medíocre e que provavelmente
morrerá muito jovem, mas esta infelizmente é uma dura verdade que deve ser
dita. Apesar desses poderes fantásticos, existem coisas que Shugenjas mesmo que
possam fazer de nada adianta todo esse poder. Para a Lei de Rokugan, os kamis
não podem ser usados como provas de um crime. O argumento, que é bem válido por
sinal, é que um shugenja suficientemente poderoso poderia fazer os kamis, mesmo
que de forma involuntária, passarem uma informação errada ou mentirosa. Um
poderoso invocador poderia fazer com que os kamis da água mostrassem uma imagem
que nunca aconteceu ou modificar pequenos detalhes da cena para mudar a
investigação, por exemplo.
Isso gerou uma longa discussão
antes que a Lei fosse aprovada, e atualmente mesmo os Shugenjas concordam com
ela. No início quase ninguém acreditava ser possível e mesmo aqueles poucos que
achavam que sim, aquilo poderia acontecer, acusavam que apenas certos Clãs
fariam algo tão inescrupuloso como profanar, de certa forma, os kamis. Acho que
eu não preciso dizer-lhe que o meu amado Clã foi o que foi mais ferrenhamente
acusado de tal ato. Nós somos os Vilões do Império, então isso era mais que o
esperado.
Mesmo dizendo isso é errado achar
que essas pequenas informações não sejam suficientemente úteis, você deve
lembrar-se do caso da Daisho roubada. Naquela vez, como eu disse, Kuni Karasu
obteve muitas informações que nos guiaram pelo caminho certo e conseguimos encontrar
a Daisho antes que fosse muito tarde. Não nego que todas aquelas informações
poderiam ter sido modificadas para nos guiar para outro caminho, o que felizmente
não aconteceu.
Este era o mesmo caso aqui, as
informações que ela conseguiria me fariam não perder tempo na hora de
investigar, mas eu não deveria confiar totalmente nelas, pois obviamente elas
poderiam ter sido modificadas. Quando Mayuu finalmente terminou o que estava
fazendo, ela parecia incomodada com alguma coisa, ainda ficou pensativa por
alguns segundos antes de lembrar-se que precisava dizer algo para sessar a
tensão no quarto, ela pigarreou constrangida antes de começar a falar.
― É muito estranho, pois eu sei o
que é, mas ao mesmo tempo não – ela disse de forma ambígua.
― Certo, isso não ajuda em muita
coisa – falei.
― Hm... eu não posso chamar isso
de doença mesmo que pareça uma – ela ignorou o que falei – parece um tipo de
maldição, mas ainda continua estranho.
― A senhorita está dizendo que
alguém fez isso com minha filha? – Sayo disse com uma mistura de surpresa e
raiva.
― Talvez, isso é uma
possibilidade – Mayuu respondeu.
― Alguém além dela ficou doente
em sua casa, Sayo-san? – perguntei.
― Não! – ela exaltou-se um pouco,
mas vendo que não tinha agido de forma correta ela curvou-se um pouco,
desculpando-se silenciosamente – Não, não que eu saiba.
Fiquei em silêncio, anualizando
aquela atitude que tinha acabado de ter. Eu posso entender que esteja passando
por momentos difíceis dado o estado de sua filha, mas aquele tipo de reação não
era algo que alguém deveria ter numa situação como aquela. Ela deveria estar
escondendo alguma coisa, isso era um problema para a análise dessa suposta doença,
não poderíamos saber se ela era contagiosa ou não caso ela ficasse escondendo
informações.
Você deve entender minha posição
naquele momento, mesmo sendo um Magistrado eu não deveria forçar Sayo-san para
conseguir informações. Esse tipo de atitude me faria perder prestígio na minha
posição. Eu não sei como funciona nas suas terras bárbaras, mas Rokugan preza
muito pelo prestígio. Ninguém pode confiar em alguém que fale uma coisa e faça
outra completamente diferente ou que faça algo que mesmo a Lei não diga nada
contra, mas que a ética diga que é errado. Deixe-me dar-lhe um exemplo, para a
Lei um Samurai pode conseguir qualquer coisa de alguém abaixo de sua posição
social, como um Heimin, por exemplo.
Um Samurai pode até mesmo tirar a
vida de um Heimin que o irrite sem que a Lei o puna, porém existe um código
Ético que nós em Rokugan seguimos, ele chama-se Bushidô e nesse código existe o
Jin ou compaixão, como já lhe falei há pouco tempo. Compaixão diz que é errado
abusar do seu poder para impor suas vontades naquele abaixo de você. Em resumo,
desconfie de pessoas que não seguem a ética, estas pessoas costumam estar
erradas.
Eu precisava conseguir aquela
informação por outros meios, talvez algumas das empregadas da casa possam saber
de algumas coisas. Sempre existem Sussurros, não importa o lugar, você só
precisa abrir seus ouvidos para poder escutá-los direito.
― Eu devo pedir a licença de
Sayo-san para poder investigar a cidade – falei calmamente – algo pode ter
passado despercebido daqueles que guiaram as últimas investigações.
― Sim, é claro – ela disse –
Ichijou-san ficará bem sozinho?
― Eu agradeceria imensamente se a
senhora pudesse mandar alguém para acompanhar-me – falei com um sorriso –
infelizmente meu depoimento não terá muito peso já que não posso ver.
― Certamente – Sayo-san falou e
eu percebi o seu desdém – meu sobrinho está na vila, creio que ele ficará
contente em acompanhá-lo.
― A senhora tem meus
agradecimentos – disse curvando-me um pouco – irei na frente para falar com os
moradores.
― Claro – percebi o incômodo dela,
mas resolvi não comentar nada. Agora estava óbvio que ela estava escondendo
alguma coisa. Mais um motivo para continuar investigando – Mayuu-san por favor,
me informe caso descubra algo e espero que entenda que irei incomodá-la caso
seja necessário.
― Eu entendo, tio – Mayuu disse
em um tom doce.
Sai do quarto e fui em direção à saída
da casa, fiz apenas um pequeno desvio, pois precisava descobrir algumas coisas
antes de sair da mansão. Os empregados da casa estavam fazendo seus trabalhos calmamente.
Alguns limpavam o chão, outros trocavam os lenções, haviam ainda aqueles que
estavam prestando manutenções ao jardim frontal e alguns outros trabalhando no
canteiro de flores ao lado da casa. Tudo ia fluindo muito bem, mesmo que
estivessem preocupados com o que estava acontecendo com a vila, no fundo de
suas almas.
Tomei pelo braço uma das
empregadas que ia passando ao meu lado e a puxei para dentro de um quarto
vazio. A pobre mulher ficou muito assustada com meu súbito movimento e ficou
rígida como uma porta, relutou no começo, mas não conseguiu resistir à minha
força. Encostei-a contra uma viga maciça do quarto e ela encolheu. Seu corpo
tremia e sua respiração estava irregular ficando ainda mais quando joguei parte
de mim contra ela, ficamos cara a cara e apoiando-me no braço acima de sua
pequena cabeça.
Ela engoliu em seco e recuaria se
não fosse a viga atrás dela. Ficou em silêncio o tempo inteiro, talvez
esperando por alguma coisa. Inicialmente eu não entendi muito bem o motivo dela
ter ficado tão assustada daquela forma, mas aos poucos eu fui me dando conta de
seu medo. Estupro; eu já ouvi falar sobre esse ato em minha sociedade, não sei
como acontece na sua, mas aqui esse tipo de ato bárbaro acontece; mesmo que não
seja algo comum. Confesso que a forma como a abordei pode dar-lhe a impressão
que tentarei alguma coisa, mas sou um homem íntegro. Não levaria uma serva para
a cama e muito menos deitaria com alguém que não tivesse a mesma vontade; além
do que eu sou um homem comprometido, não vamos esquecer esse fato, por favor.
― Acalme-se, mulher – eu falei em
um tom baixo, porém rígido – nenhum mal lhe será feito desde que responda
honestamente as minhas perguntas.
― Sim, sim senhor! – ela
respondeu nervosa.
― Baixe sua voz, eu sou cego e
não surdo – disse seco – e esteja ciente de que sua vida depende de suas respostas,
uma mentira, por menor que seja, eu tirar-te-ei, fui claro?
Sim, eu concordo com você eu
estava sendo muito mau com ela, mas agir dessa forma me pouparia muito tempo.
Desculpar-me-ei com ela assim que minhas dúvidas forem retiradas, não precisa
ficar preocupado com isso. A mulher tremeu e seu coração começou a bater
violentamente em seu peito. Ela apertou as mãos contra o peito enquanto me
olhava assustada e olhou para a porta por cima do meu ombro, em sua cabeça ela
deveria estar tentando elaborar uma forma de escapar daquela situação e
sinceramente você não deveria culpá-la por tentar.
― Eu não faria isso se fosse você
– comentei – eu disse, nenhum mal lhe acontecerá se você responder minhas
perguntas sinceramente.
― Sim senhor – ela disse em um
tom mais submisso – sinto muito.
― Sayo-san parecia muito inquieta
agora há pouco – comentei – ela entrou em conflito com alguém recentemente?
― Eu não sei – ela disse
inquieta.
― Faz tão pouco tempo que falei,
você já esqueceu? – perguntei a ela com um sorriso – Sua vida depende das
verdades que saem de sua boca, não das mentiras. Agora diga.
― Sayo-sama teve um
desentendimento com uma vendedora ambulante – ela disse nervosa.
― Quem era essa vendedora? –
perguntei.
― Não sei, a mulher vendia alguns
medicamentos, mas ela era muito estranha – a empregada disse – ela parecia
ficar olhando para cada lugar da vila com algum tipo de interesse.
― O que aconteceu com esta
vendedora? – perguntei.
― Sayo-sama a expulsou da vila
quando ficou sabendo que ela havia entrado sem permissão na plantação de flores
e destruído algumas delas – ela falou.
― Havia algum motivo por trás? –
perguntei surpreso.
― Tudo o que sei é o que ouvi de
um dos agricultores – ela falou.
― Diga – falei.
― Ele me disse que a vendedora
parecia com muita repulsa das flores e começou a destruir elas com as mãos nuas
– ela respondeu hesitante.
― Que estranho – comentei – nada
além disso?
― Não, meu senhor – ela gaguejou.
― Apenas para confirmar –
perguntei – quantas filhas Sayo-san tem?
A mulher foi pega de surpresa com
aquela pergunta, devo dizer que eu mesmo estava um pouco desconfortável por ter
feito uma pergunta como aquela, mas algo em mim estava implorando por perguntar
aquilo. Algo estrava estranho em toda essa história. Deveria haver algo mais
que apena suma filha doente para Sayo-san estar tão hostil. Meu pai mandou
ajuda poucos dias depois que a carta chegou, dessa forma não havia nenhum
sentido em Sayo-san estar tão irritada com ele.
― Três filhas, meu senhor – ela
falou.
― Três? – perguntei confuso – fui
informado apenas de duas.
― A mais jovem nasceu há pouco
menos de um mês – ela respondeu hesitante.
― Não me diga que a mais jovem
morreu pela doença? – perguntei com o coração apertado.
― Não meu senhor, se as Fortunas
permitirem a jovem senhorita ainda estará viva – ela respondeu.
― Ela foi uma das crianças que
foram sequestradas? – perguntei.
― Sim, há pouco mais de uma
semana – ela respondeu.
― E Sayo-san culpa meu pai do
desaparecimento – comentei.
A empregada não teve coragem de
falar por sua senhora, eu a teria repreendido se fizesse. Não cabe aos servos
falarem por seus senhores, cabe a eles apenas obedecerem e se envolverem até
onde é seguro de que sua influência não mudará em muita coisa.
― Você sabe dizer quantos pedidos
de ajuda Sayo-san fez à Shoichiro? – perguntei.
― Eu não tenho certeza – ela
falou – quatro pedidos talvez. Os boatos dizem que houve uma briga entre os
dois e que Shoichiro-sama não parece querer ajudar.
― Esse boato deve acabar nesse
momento – falei – se a história chegar aos ouvidos de Sayo-san vocês serão
punidos. Algum oficial veio falar com Sayo-san recentemente?
― Ninguém do Clã Escorpião, meu
senhor – ela disse – o senhor é o primeiro a vir.
― Então alguém de outro Clã veio?
– perguntei.
― Uma mulher do Clã Garça, meu
senhor – ela respondeu.
― Você pode ir agora – falei a
ela.
A mulher curvou-se para mim e
correu para fora do quarto. Eu virei-me encostando as costas na viga e deixe
minha cabeça tombar para trás. Algo não estava cheirando bem nessa história.
Preciso contatar meu pai sobre ocorrido imediatamente. Alguém estava, claramente,
conspirando para acabar com a relação entre Sayo-san e meu pai; eu deveria
fazer algo em relação a isso o quanto antes. Talvez eu devesse investigar um
pouco mais sobre esses boatos em um outro momento. Preciso descobrir mais sobre
a tal doença antes que seja tarde demais. Talvez se eu olhar um pouco mais pela
vila eu consiga descobrir o necessário para conter o problema.
Devo ser sincero, no entanto;
esta conversa sobre alguém bisbilhotando por essas terras não me agrada nem um
pouco. O envolvimento de alguém do Clã Garça nesse momento é no mínimo
suspeito. Devo tomar medidas para descobrir quem é enquanto faço meu trabalho
aqui, mais tarde pode ser tarde demais para agir.
― Eu tenho uma missão para você –
falei em um tom baixo.
Depois de dizer aquelas palavras
eu ouvi a minha frente um borbulhar que para qualquer outro seria estranho. De
uma das sombras do quarto um ser vestindo negro da cabeça aos pés surgiu. Seu
corpo parecia ir sendo lentamente formado pela sombra da qual ia saindo e logo
aquilo ajoelhou-se a minha frente esperando por um comando. Lembro-me que suas
roupas não revelavam nada ou quase nada de pele, fico imaginando o calor que
eles deveriam passar, mas aquilo, infelizmente era necessário. Sombras são um
artigo muito raro, por esse mesmo motivo apenas Escorpiões escolhidos a dedo
tem o direito de possuir uma. Existem homens muito importantes para o Clã, meu
pai é um exemplo disso, que possuem mais de uma, mas isso é ainda mais raro.
Você pode presumir, não estará
pensando errado, que apenas homens e mulheres importantes para o Clã possuem
tais servos. Não sei se posso lhe falar sobre isso, mas não fará mal, no fim
nada do que contei aqui vai importar, não é mesmo? Sombras são raras e difíceis
de treinar, mesmo assim são descartáveis, de certa forma. No fim, não são nem
homens nem mulheres, são ferramentas que servem para a um propósito, obedecer
ao seu senhor. A base para a criação de tais ferramentas são heimins ou etas
que demonstraram serem dignos de ascender. Você agora deve estar pensando que
Sombras são muito fáceis de conseguir, afinal as castas mais baixas da
sociedade são abundantes.
Esse pensamento guarda um certo
grau de verdade, porém existe um filtro natural para que alguém inferior seja
escolhido: Talento. Talento e determinação são a base para uma boa construção,
não importa qual seja o treinamento ao qual será submetido. Com esse filtro
você consegue reduzir bastante o número de indivíduos que são chamados. O
segundo filtro seria a taxa de sobrevivência; poucos são aqueles que depois de
passar pelo ritual conseguem viver.
O Clã Escorpião não é conhecido
apenas por seus venenos, mas pelas poções que nossos alquimistas preparam. Não
seria errado pensar no Clã Escorpião como um Clã alquímico no geral, mas isso
seria apenas um ramo do que fazemos. O Clã tem muitos negócios, somos uma
grande Família que se importa com cada um dos seus filhos e com as pessoas abaixo
de nós. Não é tão incomum um Escorpião ajudar alguém em necessidade, o incomum seria
fazer sem nenhum motivo. Amamos cada um dos nossos irmãos, mas temos um carinho
e um amor ainda maior por traidores. Não é à toa que demos uma floresta inteira
onde eles podem descansar pacificamente.
O candidato é submetido à
diversas poções e magias. Poucos são aqueles que sobrevivem, pois, as poções
podem ser venenosas para um indivíduo fraco de corpo e mente. Depois vem o
treinamento e essa talvez seja a pior parte para os que conseguem sobreviver à
primeira parte. O treinamento é árduo e cruel, talvez seja tão difícil quanto o
treinamento dado para alguns Samurais ou talvez até mais. A crueldade do
treinamento vem, pois, os candidatos são divididos em pares e são compelidos a
desenvolverem um laço emocional e sexual de forma que se veem como casados. O
casal passa meses ultrapassando vários tipos de obstáculos juntos. A confiança
entre os dois passa a ser tanta que nada parece abalar a sua parceria até o
momento do último desafio.
O casal é forçado a uma luta até
a morte em uma arena especial. Depois de entrar, apenas um pode sair vivo, são
forçados a matar o próprio parceiro pela sobrevivência e aqueles que consegue
terminam o Ritual. No último ato a alma daquele que pereceu na batalha é
absorvida e a Sombra estará completa. O corpo mais forte junto a mente mais
forte. Depois de completado o Ritual, o indivíduo é elevado dentro do Clã a um
status abaixo de um Samurai, mas acima de todo o resto. Uma Sombra tem a mesma
posição que uma gueixa para os Escorpiões, porém não se engane, apenas um grupo
extremamente seleto sabe da existência dessas ferramentas e espero que continue
assim. O motivo é muito simples, algumas pessoas não estão preparadas para
saber, existem verdades que devem ser omitidas pelo bem da maioria. O mundo é
construído tendo as mentiras como alicerce, a verdade é pesada demais e toda a
estrutura poderia ruir.
Existe também um outro problema,
alguns Clãs não ficariam muito felizes ao descobrir a existência dessas
pessoas. Alguns achariam desumano submeter pessoas a esse tipo cruel de
tratamento, como o Clã Fênix e o Clã Dragão. Outros veriam a utilidade e
tentariam obter para si essas pessoas, como uma parte do Clã Leão e o Clã
Garça. Não entenda errado, o Clã Leão não é como Nós, para ele espiões e
infiltradores são necessários apenas no campo de batalha. Para o Clã Garça é o
mesmo, eles têm uma força especial de infiltradores que fazem um belo trabalho,
quase tão bom quanto o nosso. Usam de táticas sujas para atingir seus
objetivos, porém, não são o Leão que fazem isso apenas no campo de batalha,
eles também podem fazer isso dessas táticas ardilosas para destruir um inimigo
comercial.
Eu ouvi alguns boatos sobre essas
pessoas e elas são de fato um inimigo formidável. Infelizmente, porém, não é
todo o Clã Garça que os veem com bons olhos, ouvi dizer que a atual Campeã do
Clã Garça quer eliminar todos eles para limpar a mancha que a sua existência
provoca ao Clã. Um movimento muito arriscado se você quer saber minha opinião.
Apenas alguém imerso profundamente na escuridão pode defender-se de um golpe
vindo de suas profundezas.
― Estou aqui para servi-lo, meu
senhor – a Sombra respondeu.
Sua voz era ambígua, parecia
tanto de homem quanto de mulher e a idade era impossível de dizer. Havia dualidade
em sua voz, lembrava um pouco a voz humana, mas ao mesmo tempo parecia ter
vindo de um profundo abismo. Sua voz era fria como uma lâmina, mas trazia um
pouco do ardor da lealdade em cada palavra proferida. Aquela era uma das
sequelas do Ritual, quando duas almas passam a habitar o mesmo corpo elas se
tornam uma só e já não há mais diferença do lado masculino para o feminino; nem
diferença entre homem e ferramenta. Elas são uma só em um mesmo ser, feito para
servir; nascido para ser destruído, mas ainda assim sua lealdade era
inabalável. Costuma-se dizer que sombras são a personificação da própria
lealdade. Uma palavra de seu senhor é sua ordem definitiva, não há hesitação em
suas ações perante uma ordem. Apenas uma das almas controlava o corpo, a outra
servia apenas como apoio para a primeira não enlouquecer, e como um sistema de
alerta. Dizem que duas mentes pensam melhor do que uma sozinha e isso é verdade
nesse caso.
― Você ouviu a conversa que tive
agora a pouco? – perguntei.
― Sim, meu senhor – a Sombra
respondeu.
― Ótimo, vá até meu pai e tire
essa história a limpo – ordenei – Irei até Sayo-san perguntar sobre o ocorrido.
Preciso saber quem ela enviou com a mensagem a meu pai. Ouça a conversa
atentamente e depois disso parta o mais rápido que puder, quero essa resposta
ainda hoje.
― Seu desejo é uma ordem, meu
senhor – a Sombra respondeu e tornou a mergulhar nas sombras sob os próprios
pés.
Saí dali apressado e voltei ao
quarto onde Sayo-san estava. Mayuu estava focada no que estava fazendo e não
notou a minha presença ali. Sayo-san foi a primeira a olhar para mim e havia um
jovem conversando com ela. Aquele deveria ser o sobrinho que ela estava falando
mais cedo. Ignorei-o naquele momento, pois havia outro assunto que precisava
ser abordado. Ela ficou surpresa em me ver ali, já que tinha avisado que sairia
primeiro.
― Peço desculpas por atrapalhar, Sayo-san
– curvei-me para ela respeitosamente – fui informado, porém, de um assunto tão
urgente quanto este.
Sayo-san foi pega de surpresa
pela segunda vez, ela entendeu imediatamente qual era o assunto que estava
falando. Ela respirou fundo e curvou-se um pouco para frente pensativa. Seu
coração batia forte por lembrar-se daquilo que era tão preocupante quanto sua
filha doente. Ela pareceu conter uma lágrima e voltou-se para mim.
― Eu não tenho nada para falar –
ela disse com raiva.
― Eu entendo Sayo-san, sinto
muito, mas eu devo insistir – disse tentando acalma-la – o que aconteceu com
vossa família foi muito grave, mas eu quero que entenda meu pai não me informou
sobre nada além de sua filha doente.
― Soichiro está tratando nossa
relação de forma tão leviana?! – ela
perguntou com raiva.
―Creio que está havendo um
equivoco aqui – comentei – há quantos anos a senhora conhece meu pai?
― Mais de vinte anos – ela disse.
― Quantas vezes meu pai tratou de
forma banal a amizade entre vocês? – perguntei.
Aquela pergunta pareceu fazer ela
acalmar-se e voltar a raciocinar devidamente. Ela deveria ter lembrado que meu
pai nunca esqueceu de parabenizá-la por quase nada. Meu pai é um homem muito
cuidadoso quando o assunto envolve dinheiro. Por mais simples que possa parecer
um evento, lembrar-se torna os laços entre os envolvidos muito mais fortes. Meu
pai, todo ano, mandava vários presentes para Sayo-san, por seu aniversário ou
pelo casamento. Mesmo suas filhas recebiam anualmente presentes daquele homem.
Esteja desiludido, no entanto, meu pai não fazia aquilo apenas por ser um bom
homem, mas porque aquela família lhe dava muito lucro, perdê-la era um prejuízo
incalculável para o seu empreendimento. Depois de lembrar-se de tudo que meu
pai já fez por ela, Sayo-san pareceu acalmar-se.
― Vejo que a senhora pensou
melhor sobre o assunto – disse com um sorriso – quantas mensagens a senhora
mandou a Soichiro?
― Pelo menos dez – ela disse –
tive resposta apenas em uma delas. Nem mesmo quando mandei uma mensagem do
nascimento de minha filha ele respondeu.
― Eu posso entender a sua
indignação, Sayo-san – comentei – mas devo assegurá-la que se meu pai não
respondeu suas mensagens é porque nenhuma delas chegou a seu conhecimento. Eu
lembro claramente da raiva que ele teve quando ficou sabendo não fazia muito
tempo da suposta doença que está assolando sua vila.
― Não faz sentido nenhum – ela
comentou surpresa.
― Quem a senhora pediu para
entregar as mensagens? – perguntei.
― Um dos homens de seu pai – ela
disse – Hideki-san.
― Irei investigar o assunto o
quanto antes, não precisa se preocupar mais – disse – agora se me permite
perguntar; A senhora encontrou-se com alguém diferente recentemente?
Nesse momento Sayo-san congelou
completamente pelo medo. A frente dela não parecia mais haver o seu salvador,
mas um carrasco pronto para cortar sua cabeça. Ela tremeu com a pergunta, pois
dependendo da resposta aquilo poderia implicar em alta traição, e como eu disse
mais cedo, nós amamos traidores do fundo do coração. Sayo estava inquieta, mas
ela sabia que não responder era pior. Ela, no entanto, não sabia o que deveria
falar, pois estava com medo de que eu entendesse de forma errada o que
aconteceu.
― Está tudo bem, Sayo-san – eu
disse com um sorriso – A senhora pode me contar o que quiser.
― Encontrei-me c-com Daidoji
Kamia – ela disse com a voz trêmula.
― Então aquele abutre finalmente fez seu movimento – eu disse com um sorriso divertido e sombrio. Muito bom.
O capitulo dessa semana ficou um pouco grande e pensei em dividir, mas sinceramente ficaria pequeno demais se fosse dividido então deixei assim. Espero que tenham gostado da Memoria e desejo-lhe uma ótima semana.